INTELECTUAIS & SOCIEDADE | O termo democracia e a tirania progressista

Nati Jaremko
Nati Jaremkohttps://medium.com/@naty.jaremko
Tentando sobreviver ao mestrado em história e uma grande curiosa nesse mundo do conhecimento. Libertária. Gosto quando posso falar e pensar livremente. Começando a escrever umas coisinhas aqui e ali.

Como o conceito de democracia se esvaziou de sentido e virou sinônimo de um projeto ideológico que abusa da retórica para associar a verdade à sua cosmovisão

Em realidade, a ideia de democracia como concebida pelo Estado Moderno está, por definição, relacionada a um projeto de poder progressista, que se difere da defesa de valores transcendentes, pois aposta em critérios circunstanciais para as leis que regem o convívio social; mas não irei pelo caminho dessa discussão, pois o assunto é longo. Contudo, mesmo dentro da lógica democrática, é possível perceber princípios invariáveis que norteiam um plano ideológico tirânico e controlador: os próprios criadores das “regras do jogo”, a classe falante que partilha daquela cosmovisão, questionam os resultados da competição quando esses não lhes são favoráveis, ou seja, nas raras ocasiões em que o “oponente” vence uma batalha. Trocando em miúdos: a vontade da maioria prevalece apenas se não for contrária aos interesses dos donos do poder.

O Brasil esteve, nos últimos anos, sob uma estrutura administrativa cujas diretrizes desviaram em vários pontos das referências do mainstream ideológico. Alguns dos críticos da agenda progressista comemoraram, outros consideraram que não houve sobriedade o suficiente para que os pilares mais importantes de sua cosmovisão fossem solidificados; mas o fato é que, ainda que simbolicamente, esse governo incomodou uma classe que apostou por muitas décadas na garantia de seu lugar de poder. Ele personificou uma revolta contra padrões de comportamento e referências de verdade que foram sendo estabelecidos arbitrariamente e protegidos por meio de armadilhas retóricas.

Ainda que sem estratégia definida ou referências intelectuais sólidas, essa resistência fez aflorar as inconsistências morais da narrativa corrente sobre a realidade. Um breve retorno à história política recente do país é o suficiente para percebermos as modificações no eixo dos discursos. A base é sempre a mesma: “tudo pode na democracia, menos o que a invalida”. A regra parece clara e objetiva, parece valer para todos os lados em disputa, igualmente, mas a artimanha é justamente o esvaziamento de sentido do conceito central.

Democracia, nesse contexto, virou receptáculo de signos pertencentes a uma forma muito específica de se expressar sobre a realidade. Assim, uma outra percepção do mundo é automaticamente anulada por falta, justamente, de um protocolo de linguagem que traduza para os que já aceitaram passivamente os símbolos progressistas quais seriam os planos da direita para disputar os espaços de poder.  

Tudo o que está relacionado a uma direita clássica – lembrando que uso aqui os termos direita e esquerda da maneira como estão consolidados no vocabulário político atual – foi sendo marginalizado por um discurso forjado pela classe falante, os intelectuais e grandes mídias, por meio de mecanismos retóricos que servem para afastar o signo linguístico de seu correspondente significado e, posteriormente, ambos de sua referência no mundo real.

Nesse cosmos esquizofrênico do debate político, apela-se para a defesa da liberdade, enquanto abstração ideológica, para legitimar precisamente o atentado à liberdade de algum indivíduo real ou a imposição de limitações burocráticas a uma possibilidade concreta de se agir e pensar livremente. Recorre-se ao conceito de “instituição democrática” para reduzir o poder da vontade popular, que estaria, em essência, ligada à definição verdadeira de gestão democrática.

Ainda que aos tropeços, esse governo trouxe uma onda de questionamentos com relação ao modo corriqueiro de se fazer política ambiental, manejo de propriedades, políticas educacionais e de segurança, bem como de discussões sobre os limites do que pode ser dito no debate público e de alerta sobre a ameaça que o controle do discurso por burocratas pode representar para um caminho honesto de aproximação da verdade.

Esses desvios da norma arbitrariamente estabelecida pelos donos do poder foram pesadamente atacados por meio de narrativas repletas de conceitos mal definidos, que apelam para uma aparência de integridade moral e lógica, ainda que sejam justamente os seus perpetradores os responsáveis por criar os parâmetros estéticos do debate político. Ou seja, a definição de “certo” passa a ser associada ao que é estabelecido por um dos lados da disputa, e essas referências podem se inverter bruscamente sem a necessidade de uma justificativa racional, já que a própria aparência de racionalidade é desenhada pelos tais poderosos.

A recusa em se render a uma agenda com interesses políticos de diretrizes sobre questões ambientais e a redução do aparelhamento nos órgãos de fiscalização foram associadas diretamente a aspirações destrutivas. O questionamento de perspectivas relativistas sobre fatos biológicos básicos e a rejeição de concepções identitárias e coletivistas sobre as características físicas dos indivíduos e a representatividade política  foram traduzidos como preconceito e violência contra minorias.

O repúdio a políticas de limitação de liberdade individual impostas por meio de emendas não votadas foi rotulado como homicídio e habilmente retirado da discussão sobre instituições democráticas à qual os donos do poder normalmente recorrem. Está aí um bom exemplo de como alteram levianamente a ênfase do discurso corrente sem perda considerável de terreno político, já que a essência de seu discurso é relativista.

O incentivo a que se fale o que se pensa, ainda que algo possa soar ofensivo, e o reconhecimento da liberdade de expressão como pilar do processo de apreensão da realidade, foram tratados ostensivamente como apreço deliberado por hostilidade e provocação, sem que houvesse a menor boa vontade para que se tentasse entender os motivos reais que levaram tantas pessoas, mesmo as menos familiarizadas com as grandes discussões filosóficas sobre liberdade e conhecimento, a entenderem intuitivamente a necessidade de se trazer certas colocações à mesa de disputas retóricas.

A existência dessas pessoas e de suas opiniões é, mais uma vez, explicada através de leituras simplistas da realidade, baseadas em chavões e construção de espantalhos ideológicos e realizadas por aqueles que se encontram numa bolha narrativa e que se arrogam um lugar de pensadores críticos quando, muitas vezes, apenas ressoam as falas de algum professor ou autoridade intelectual. Dizem-se representantes da intelectualidade e protetores da cultura humana, mas parecem incapazes de analisar honestamente o material que têm em mãos, já que a história das ideias está repleta de discussões que legitimam aquelas perspectivas tão rejeitadas por esses pensadores.

É por meio dessas referências obtusas que são estabelecidos os limites da “direita democrática” ao mesmo tempo em que são trazidos ao campo do senso comum os mais diversos delírios progressistas.

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