INTELECTUAIS & SOCIEDADE | A arrogância fatal do intelectual e o brasileiro de bem

Nati Jaremko
Nati Jaremkohttps://medium.com/@naty.jaremko
Tentando sobreviver ao mestrado em história e uma grande curiosa nesse mundo do conhecimento. Libertária. Gosto quando posso falar e pensar livremente. Começando a escrever umas coisinhas aqui e ali.

Meu pai foi um desses eleitores de Bolsonaro que ficou bastante afetado com os resultados do primeiro turno, e a postura dele me fez lembrar que apesar dessas eleições trazerem à tona disputas que simbolizam discussões mais profundas do que as da política do dia, e de algumas ideias atemporais sobre o bem e a verdade mesclarem-se a essa bagunça ideológica toda, defender o certo está relacionado a atitudes que ultrapassam muito o tipo de decisão tomada no domingo, e a carga ideológica aflorada por essa lógica burocrática e legalista de organização de sociedade, tão marcada em época de votação,  pode fazer o indivíduo perder o foco nessa empreitada de defesa dos valores corretos.

Dito isso, minha posição perante meu pai me fez pensar num grupo pouco compreendido pelos intelectuais do Brasil afora, até mesmo pelos mais liberais ou conservadores. Um grupo ao qual meu pai pertence, de pessoas que têm muito conhecimento sobre coisas práticas do dia a dia e uma inteligência moral invejável, porém que não compreendem a linguagem das classes intelectuais, de modo que, quando impelidos a se expressar dentro dessa chave de leitura do mundo, têm dificuldade de assimilação de certos símbolos.

São tratados pela esquerda como odiosos e preconceituosos; e por parte da direita como materialistas e imediatistas. É óbvio que existem indivíduos gratuitamente hostis, reducionistas, que não trabalham com a essência das ideias, mas também há uma imprecisão estrutural na análise dos intelectuais. Eles derivam esse tipo de conclusão de comentários ou posturas cujo conteúdo em si poderia ser analisado como tal, mas que se encontram dentro de um contexto muito específico de sequestro dos significados e esvaziamento dos símbolos por parte de grupos que disputam o poder e que, esses sim, não estão interessados em investigações honestas.   

A linguagem e a realidade que ela descreve influenciam-se, moldam-se mutuamente, mas aparecem apartadas em determinadas conjunturas. O totalitarismo das classes falantes fabrica realidades narrativas paralelas, cujos filtros banem vigorosamente algumas pessoas do processo interpretativo formal, e o malabarismo retórico cria uma estrutura discursiva tão truncada, que se torna praticamente necessário que se dedique apenas a desfazer os desvios lógicos para que se consiga deixar minimamente claro um posicionamento moralmente assertivo.

E é aí que muita gente, que também cultiva uma vida espiritual rica, pode ter dificuldade em se expor como tal para quem apreende a realidade a partir de crivos teóricos muito rigorosos e, por vezes, tão reducionistas quanto é o pensamento do indivíduo que criticam. Ao citar a falta de consciência sobre a própria pequenez ante ao mundo dos que, por vezes, expressam suas opiniões por meio de jargões políticos datados, esquecem-se também de seus próprios limites no processo de compreensão da realidade imediata.

Podemos refletir sobre os problemas de interpretação derivados de lógicas muito circunstanciais, mas a verdade é que não é possível apontar exatamente qual seria a melhor estratégia de ação – ou se a resposta é a própria inércia – para manter ou fazer proliferar as verdades perenes em cada momento da história.

Quando falo desse tipo de impostura intelectual não me coloco acima dela. Já me deixei levar pelo frenesi orgulhoso de conseguir encaixar todas as peças do raciocínio dentro do recorte que fiz da questão, isso enquanto digitava, escrevia no caderno ou lia algo de dentro do meu quartinho todo confortável e mantido graças ao apoio dado por meu pai ao tipo de carreira que quis seguir: ainda que ele não partilhe exatamente dos meus interesses e conhecimentos, pôde reconhecer algum potencial no modo como trabalho com as ideias e palavras.

E essa relação entre mim e a família – eu com a liberdade para testar uma mesma ideia de várias maneiras e experimentar com perspectivas e espectros políticos; eles se atendo a um caminho mais direto que supriu demandas urgentes – é bem representativa de uma dinâmica que se estende ao restante da sociedade: o intelectual tem que entender que a existência de um grupo dedicado a considerar, debater e selecionar o que há de melhor dentro dos processos cognitivos e culturais depende de uma mínima estabilidade garantida por uma classe de pessoas que não podem ser resumidas ao modo como se expressam em contextos específicos, através de ideias que ainda não foram submetidas a um processo de lapidação ou que foram intencionalmente divulgadas pela intelligentsia como associadas a símbolos linguísticos imprecisos.

Eu sou de um estado pequeno, no Norte, que votou massivamente no Bolsonaro e onde tem muita relação de produção típica de zona rural: burocracia fiscal – legislação ambiental em que um código entra em conflito com o outro –, invasão de terras e convívio com várias etnias indígenas. Lógico que tem gente ruim, oportunista e violenta, em qualquer categoria e como em qualquer lugar, mas eu percebo como as pessoas de lá estão fartas, e com razão, de se verem representadas como espantalhos ideológicos simplesmente por seguirem rotinas diferentes das dos trabalhadores de áreas mais cosmopolitas e urbanizadas, rotinas essas que desembocam em funções que, diga-se de passagem, geram frutos de que todo o país dispõe; ou por defenderem seus patrimônios como qualquer indivíduo “da cidade” faz ao chamar a polícia por conta de um celular roubado.

Essas pessoas apoiaram um governo que trouxe uma infraestrutura de escoamento de produção que há muitas décadas não se via na região: quem mora no Rio e em São Paulo não tem noção do que é demorar cinco horas para ir de uma cidade a outra, serpenteando no meio de caminhão carregado, passando por lugares ermos – imagine o carro enguiçar! –; um governo que valoriza a propriedade privada, que fala em simplificar a legislação ambiental e que se preocupa com problemas complexos com os quais só quem está na ponta da cadeia de produção lida, como o arruinamento de madeira apreendida enquanto algum processo confuso corre na justiça. Que fala em posse e porte de armas num lugar em que há criança que morre por ataque de onça!

Que traz à tona um outro tipo de perspectiva cultural sobre o convívio com os indígenas, que reconhece a existência, em muitos casos, de uma relação harmônica entre eles e os produtores rurais e proprietários, e os perigos de um discurso romantizado que corrobora o abandono dessas populações à própria sorte.

Eles lavam as mãos ante situações de violência, como a agressão da esposa indígena pelo marido ou o assassinato de crianças que nascem com alguma deficiência, ao encerrar as discussões com relativismos culturais. Esse governo se pronunciou, ainda, sobre o oportunismo de ONGs parasitas e acadêmicos sem qualquer vínculo com a região e que impõem uma narrativa fabricada sobre essas interações ao invés de observar honestamente sua complexidade.

Foram feitas coisas concretas e teve coisa que ficou mais no campo da disputa narrativa mesmo, então o eleitorado se dividiu entre quem percebeu o apoio prático e os que se identificaram com o que o governo representa, mas é uma grande injustiça dizer que suas escolhas se basearam em alguma intolerância ou preconceito abstrato. Se há hostilidade em suas posturas e comentários não é contra a cor da pele ou a vida pessoal de alguém, mas contra uma dinâmica discursiva que os reduz a indivíduos mesquinhos e frívolos.

Enquanto a intelligentsia desfrutava de sua juventude para ousar, considerar ideias, adquirir experiências culturais e afetivas – o que é, de fato, importante para o desenvolvimento intelectual –, boa parte dos meus conterrâneos enterravam seus melhores anos no meio do mato, deixando sangue e suor ao trabalhar a terra para ter lucro com ela apenas dez anos depois, ouvindo de pessoas, que mal sabiam qual a unidade de medida se usa em área rural, que eles eram grandes proprietários privilegiados, ou dos que achavam que toda a região amazônica tinha a mesma vegetação, que eram destruidores da floresta, exploradores – não têm noção de como o respeito mútuo entre proprietário e funcionário em rincões como esses é questão de sobrevivência.

Eu mesma vi meu pai, com mais de sessenta anos, carregando coisa pesada para dentro de uma camionete velha, que não tinha nem direção hidráulica, às quatro da manhã, gripado, para dirigir por mais de três horas, sozinho, para cuidar de uma terrinha que o pai dele deixara. Eu vi o meu pai com crise de pânico em meio à disputa jurídica excruciante para retirar invasor de terra que ainda fez queimada em lugar de reserva ambiental sobre a qual ele era o responsável, sentindo-se incapaz por não conseguir defender o que era da família dele. Eu entendo o que ele quer dizer quando fala por meio de jargão ideológico, eu sei o contexto, seria um grande desrespeito com a própria verdade dizer o contrário.

Ele trabalhou para que eu pudesse pensar para além desses chavões, para que eu pudesse tentar construir, no mundo das ideias, algo de significativo. Mas qual seria o meu valor intelectual se eu não tivesse a capacidade de perceber as sutilezas que circundam o indivíduo que está por trás de um discurso aparentemente simplista?

Sem qualquer imposição ou tentativa de controle, meu pai me fez identificar a validade de suas posições, depois de muitos anos em que estive desconfiada delas – como boa estudante de humanas –, o que só torna esse reconhecimento mais sólido, pois partiu de uma reflexão real e não de coerção.

Ele conseguiu um respeito que nada tem a ver com uma noção vazia de dever, mas que passou por todas as provas lógicas de minha mente. Espero que ele perceba a importância de sua trajetória nesse país por que tanto apreço tem, a diferença que fez nesse microuniverso que eu represento, o quanto marcou minha trajetória intelectual pela observação dos atos mais singelos que ele praticava – esse tipo de coisa não é efêmero como uma eleição – e que isso acalente seu coração: que tipo de bem eu faria ao meu próprio espírito se essa não fosse uma prioridade?

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2 COMENTÁRIOS

  1. O que voce escreveu nessa coluna sobre a forma de manifestacao de seu caro pai, me remeteu ao “pragmatismo de sobrevivencia”, que vai automaticamente, conforme o passar do tempo, moldando os pensamentos e desenhando nossa visao “intelectual” do mundo. Penso ser de muito valor, porque nesses pensamentos ditos de forma sonora podemos verificar o “estudo em campo” da realidade, a analise precisa de quem sente na pele a dor do dia-a dia e tem com isso o privilegio de desenvolver a sua propria intelectualidade. Parabens ao “papais da Nati”. Porque dessas pessoas nascem grandes frutos.

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