É estranho que todas as recordações que evocamos têm estas características. Estão sempre envolvidas em tranqüilidade: é a sua marca predominante. Embora as impressões daquela época não fossem silenciosas como
REMARQUE. NADA DE NOVO NO FRONT.
hoje se manifestam, produzem agora esse efeito. São aparições mudas, que me falam por olhares e gestos, sem recorrer a palavras, silenciosamente.
Lembrei-me de uma vez em que, há mais de meia década, conversava com uns amigos da faculdade – de curso de “extrema humanas” – e em meio a ofensas e expressões de preocupação, quase unânimes, com relação à ascensão do “movimento bolsonarista”, surge uma criatura meio desavisada para expressar certa inquietação, quiçá até maior do que com a direita, com a radicalização do comunismo latino-americano.
A reação foi um silêncio, com expressões gerais de perplexidade, cortado abruptamente por um choro gritão de uma das meninas que começou a falar compulsivamente por cima do sujeito e a emitir enxovalhos. Ele, por sua vez, tentou explicar sua posição e fez uma série de perguntas honestas sobre os receios da colega, que respondeu com mais ruídos confusos e sem formular uma sentença lógica sequer.
Essa cena me marcou por muito tempo. Não tinha muita posição política à época – não que eu tenha uma super definida hoje em dia, mas sei mais ou menos em que terreno piso – e confesso que entendi a balbúrdia toda; eu era mais comedida, mas sentia como ela. Percebi a inconstância de sua postura, contudo, e foi um choque! Fez pairar sobre meu cérebro e “coração” uma sensação de desorientação.
Eu entrevi, apesar da profusão de percepções vagas, emotivas e influenciadas pelo pensamento “da vez”, que construíam a minha opinião política da época, o lado da ignorância sendo confortavelmente sustentado, com assertividade e, nesse caso, pior, com agressividade. Eu vi uma reação desproporcional, que alguns aí até chamariam de violência, sendo facilmente justificada, era o que indicava o comportamento dos demais: fora prontamente atendida e consolada, tratada como uma espécie de vítima, e o rapaz, no máximo, ignorado; claro, naquela época ainda imperava certa paz.
Tenho pensado muito sobre isso, nem tanto sobre a cena em si, mas sobre a assimilação do evento, sobre o sentimento que se apoderou de mim, pois algo parecido tem assomado ultimamente e, nas minhas tentativas de esclarecer a relação entre esse microuniverso social e o cenário atual, uma compreensão vem se formando.
Todos sabem que faz parte do modus operandi socialista, esquerdista, progressista, revolucionário… como queira… a culpabilização de um sistema abstrato, a proposição de uma via indefinida de ação política, a confusão entre ideal e real. Assim, uma explicação evidente para o desfecho dessa minha experiência é a sensação de validada que a menina sentia por tomar um partido abstrato do oprimido contra o opressor, por sua vez simbolizado na partícula dissonante.
Contudo, eu sinto que há mais do que isso para se pensar e discutir a respeito do que contei, ou talvez eu só não possa deixar o texto acabar ainda; de qualquer jeito tornarei essa prorrogação proveitosa. Lembrei-me do personagem de “Nada de Novo no Front” dizendo que suas recordações sobre a vida nas trincheiras eram silenciosas, mesmo que a algazarra incessante tomasse conta da experiência real, e pensei nas deturpações que acometem a mente. Apesar das que estão tomadas por teorias sociais pré-embaladas serem mais suscetíveis, serve para qualquer mente.
Esse silêncio da lembrança me fez perder de vista o peso de seu significado. Comecei a recordar que tinha um elemento estético no enredo todo. O que não é novidade, com essa galera sempre tem. Lembrei-me também de Sabina, de “A Insustentável Leveza”, e sua ojeriza pelo kitsch comunista, mais do que pela truculência. Esse elemento estético tomou conta do contexto social de hoje. Uma violência real é levada a cabo e apoiada prontamente; e justificada como defesa de uma vítima que nem humana é mais, de uma estrutura que pouco antes fazia parte do mecanismo do suposto opressor – do Estado burguês ou o escambau. E, especificamente, tem até uns ex-inimigos de carne e osso e Registro Geral.
Paralelamente, contudo, estão emitindo um discurso em respeito a alguma persona cuja existência real é, no mínimo, pouco conhecida, e se debruçando exaustivamente sobre respostas para dúvidas que ninguém tem, então um massacrezinho aqui e ali, só dos que que carregam a opressão no sangue não parece grande coisa. O barulho fica silencioso rapidinho, lembra? É só se afastar do foco do conflito. E no fim o que importa é a roupagem quimérica da ideia de instituição ou sistema político; a essência, o que fazem pela gente, fica em décimo plano ou em plano nenhum.
Assim como a Sabina, a Julia de “1984” manifestava essa aversão pela estética. A reação era até absurda, primitiva… existe nesse livro a expressão de uma afinidade com a devassidão e o sórdido que vem da tentativa desesperada de opor qualquer coisa à obscenidade real, travestida de limpeza e equilíbrio.
Dá para perceber que alguma estética importa, mas quando o barulho é muito grande, fica difícil de discernir quanto dela; do mesmo modo, barulho nenhum faz com que a gente perca de vista a seriedade da coisa. Eu confesso que ando me identificando com essas personagens, minha repugnância é maior com a “fala mansa e o grande porrete”, e tudo que sugere essa voz fininha anda me gelando os ossos.
Não vou conseguir me juntar à turma dos intelectualizados da “política da prudência”, que de trás de seus óculos de meia-lua – muitos ainda nem tiraram a etiqueta –, estão sugerindo assertivamente mil outras estratégias mirabolantes para se dar vazão à ojeriza acumulada por essa estética que dissemina e ampara violações. Já tive a minha cota desse sentimento de se empertigar. É bom, né? Eu sei. Talvez eles ainda não tenham experimentado o suficiente. A intelectualidade de “direita” é meio nova no país. E se me perguntam se não tenho medo da exacerbação, retorno o questionamento para saber se não há o receio pela apatia, provocada, talvez, justamente pela dificuldade de abstração que faz tudo parecer meio distante, “insustentavelmente leve”.
Se erro, é sendo honesta, pela primeira vez não há medo do banimento. Essa intelecção “morna” não me está satisfazendo, meus olhos já estão afiados para enxergar aí uma pretensão por passar falsa ideia de domínio da situação, que é algo que os intelectuais adoram fazer, seja qual for sua cosmovisão.
Talvez eu só esteja tentando me redimir pelos tempos de cumplicidade, ou talvez finalmente haja lugar para lançar mão da justificativa do “sistema opressor”, talvez eu só precise de um tempo para pensar, e eu não vou fingir um distanciamento que não existe para ninguém. O fato é que a única verdade do momento é que estou ávida para usar uma frase que ficou cravada em minha mente pelos anos de convivência com a “galera da luta”: “talvez um dia eu seja gentil e conciliadora, mas hoje não!”. Entre o asséptico ardiloso e o contaminado que “banca” o que diz, eu fico com o último. É isso! Já podem me expulsar do clubinho.
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