INTELECTUAIS & SOCIEDADE | O intelectual orgânico e a fobia do questionamento

Nati Jaremko
Nati Jaremkohttps://medium.com/@naty.jaremko
Tentando sobreviver ao mestrado em história e uma grande curiosa nesse mundo do conhecimento. Libertária. Gosto quando posso falar e pensar livremente. Começando a escrever umas coisinhas aqui e ali.

[…] excluem de maneira reducionista aspectos incômodos da realidade ao proibir perguntas, mutilam e falsificam a consciência da realidade facilmente apreendida pela experiência […]

SANDOZ, Ellis. Introdução à VOEGELIN, Eric. In.: Science, Politics & Gnosticism. Trad. livre

Pode causar estranheza a um desavisado, que pouco conhece das incongruências inerentes ao pensamento na era da pós-verdade – época de tomada de poder por meio do controle de narrativas –; mas é fato que nos ambientes universitários atuais, ou seja, justamente nos locais oficiais de produção e divulgação de conhecimento, a restrição ao questionamento integra o método.

Como compreender a realidade sem confrontar acepções a respeito de partes dela? Sem poder testar ideias que as circundam? Sem que um aluno possa perguntar sobre detalhes confusos de uma de suas descrições? Eventualmente ele terá seu raciocínio confrontado pelas explicações do professor, pelas percepções dos colegas ou até mesmo por pensamentos que lhe acorrerão no futuro, e é essa tensão de noções que inicia os processos de criação de hipóteses e teorias. É necessário mentes livres do medo e de amarras lógicas para que a criatividade intelectual flua e a complexificação dos modelos sobre a verdade ocorra.

Os mais ingênuos se espantam também quando lhes digo que grandes professores e pesquisadores são cúmplices de uma estrutura que tira de seus alunos a possibilidade de perguntar honestamente. Acredito que a honestidade seja um dos meios mais eficientes para ultrapassar as limitações da mente no processo de compreensão do mundo. É através dela que a reflexão continua, apesar das dúvidas. O erro gerado por uma dificuldade honesta de entendimento pode ser superado pelo método investigativo, pois pertence à mesma realidade que a investigação, usa o mesmo tipo de lógica, ainda que se perca na conclusão. Um observador astuto e experiente consegue perceber a falha, e a superação do desvio faz parte do processo de testagem da ideia.

Desse modo, quando uma visão de mundo propaga o erro intencionalmente, é interessante a ela que a possibilidade de questionamento não exista ou que as dúvidas sejam pré-programadas, fabricadas para validar essa explicação artificial da realidade e dar credibilidade a ela. E é isso que vejo acontecer na universidade atualmente. Alunos que acatam as teorias sem entender suas premissas, estudantes que copiam dúvidas padrão de outros trabalhos acadêmicos ao invés de manifestarem processos cognitivos próprios. Pesquisadores que não entendem o pressuposto mais básico do método investigativo, filosófico ou científico. Confundem-no com a visão do especialista, e esta com a realidade em si.

Essa ideia, apesar de assustadora, não deveria soar como revelação. Não é surpresa para ninguém que já tenha frequentado minimamente ambientes acadêmicos ou que já tenha ouvido algum professor médio tratar de processos pedagógico o fato de que as teorias que norteiam os métodos de ensino e pesquisa, reverberadas com maior ou menor grau de consciência, são relativistas, imanentistas, baseiam-se na acepção de que toda relação de poder é arbitrária e pretensiosa e de que todas as premissas servem a objetivos personalistas, como se não existissem princípios sólidos que norteiem a realidade.

Assim, o estudioso acredita que seu papel seja o de entrar em disputa com a visão de mundo oposta àquela da qual é aliado. Ele não vai tentar entender o mundo, ele vai tentar moldá-lo.

“Toda narrativa é ideológica, por isso só nos resta difundir a que valoriza os desprivilegiados”, “como toda hierarquia é tirânica, vale tudo contra a ordem estabelecida, vale até a mentira e a própria tirania”, “tudo é sexo, de modo que não faz sentido refrear percepções subjetivas acerca da sexualidade com base numa lógica universal”. Quem já passou pela universidade sabe que esses motes balizam o pensamento geral. São percepções circunstanciais, mas que se transformaram em premissas. Como algo que faz parte da estrutura poderia ser responsável por impulsionar seu funcionamento? Não faz sentido.

Existem arbítrios financeiros, hierarquias corruptas e ações movidas por desejo sexual, sim, mas usar um sistema amparado nessas variáveis para explicar a realidade como um todo é uma escolha. Por que ninguém faz perguntas para testar a lógica de tal sistematização? Não é simplesmente por causa dos casos de humilhação aqui e ali de quem ousa se expressar de maneira diferente, mas principalmente devido ao estabelecimento de um mecanismo que impede sequer que se pense em perguntar.

Se esses modelos da realidade são apresentados como premissas, a discussão já parte deles, e as gerações de alunos que se sucedem vão perdendo de vista o início do debate, em meio à profusão de frases incoerentes, mas apresentadas em tom assertivo, de modo que não conseguem refletir sem cair em armadilhas lógicas.  

Eles nem ao menos mentem sobre o papel secundário que atribuem à realidade. Em manifestos lançados recentemente por universidades públicas de São Paulo, por exemplo, ao expressar contentamento com a eleição do candidato de sua preferência, os alunos utilizaram reiteradamente a expressão “voltaremos a sonhar”. A cosmovisão à qual aderem é assumidamente distante do mundo real. A preferência é por estímulos à manutenção de um projeto utópico, não por discussões abertas que revelem as limitações do ser humano para entender e agir.

Para que se retome um processo espontâneo de conhecimento, é necessário que se abra caminho para perguntas sinceras. A impossibilidade de questionar honestamente causa um embotamento da mente com potencial destrutivo, inimigo do bem e da verdade. Um oficial da SS não pensaria em duvidar da legitimidade das ordens que executa. A realidade alternativa estava tão encaixada em sua visão de mundo que, para além do medo da repressão, não lhe sobrava a possibilidade da dúvida. Ainda que pudesse não saber de todas as etapas do empreendimento ao qual pertencia e da importância de suas ações, acreditava no projeto de poder.

 “Sonhar” deixa de ser uma ambição inócua quando pertence a uma estrutura de reordenamento de poder. A recusa em reconhecer as limitações do homem na manipulação da realidade não gera mera frustração, mas também o estabelecimento de um estado de insanidade coletiva no qual impera a ilusão da compreensão e do domínio da situação.   

Quem acha que entende tudo ou confia no grupo ou indivíduo que diz deter essa capacidade – validado por, digamos, um status, como o de governante ou especialista – exerce arbítrio sobre o mundo ou observa inerte enquanto essa manipulação acontece. Não há “prestação de contas”, não existe a necessidade de provar a moralidade e eficiência de seu plano para sociedade, pois pertence a uma realidade paralela. E nela, as perguntas honestas devem ser eliminadas, pois revelam a falsidade do sistema.  

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