ENTREVISTA | Frederico Lourenço fala sobre importantes lançamentos

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

A Edições Kírion lança hoje um importante combo de Frederico Lourenço, composto dos títulos Latim do Zero e Nova Gramática do Latim. Abaixo, reproduzimos a entrevista feita pelo editor Felipe Denardi com o autor.


Frederico Lourenço (1963) é atualmente o mais importante dos mestres de estudos clássicos de Portugal. Ensaísta, tradutor, poeta e romancista, já verteu para o português as duas epopéias de Homero, as Bucólicas de Virgílio e muito da poesia grega, editado no volume Poesia Grega: De Hesíodo a Teócrito. Em 2016 teve início a publicação de sua tradução da Bíblia, que já lhe rendeu o Prêmio Pessoa.

Em 2019, publicou sua Nova Gramática do Latim, obra moderna, atualizada e detentora de muitos méritos, entre os quais introduzir o estudante ao mundo da cultura latina ao mesmo tempo que o forma mais profundamente no uso de nossa língua vernácula. E ocorreu que, no ano seguinte, dado o período de reclusão ocasionado pela pandemia de COVID-19, o professor começou a pensar em formas de manter motivada sua turma de Poesia Latina. Criou uma página no Facebook chamada Vergílio em Coimbra, e logo se deu conta de que, ao ensinar na internet, alcançava um público muitíssimo mais amplo, de gente que, interessada nas sutilezas da poesia latina, precisava, no entanto, aprender latim do zero. Criou, então, outra página, que obteve milhares de seguidores em tempo recorde, e cujas lições foram em seguida coletadas e editadas, dando origem ao volume Latim do Zero a Vergílio em 50 lições.

Os dois livros, juntos, compõem um material completo para o estudante que queira, de maneira leve e instigante, embarcar no estudo do latim, passando por questões lingüísticas bem como pelos temas mesmos da literatura latina, sendo sempre privilegiados textos autênticos. Este tão dedicado e tão competente professor, que deu às Edições Kírion o privilégio de editar esses seus livros no Brasil, honrou-nos também respondendo umas breves perguntas, que agora seguem para o leitor.


1No Brasil, existe uma discussão acalorada sobre qual seria a melhor maneira de se aprender as línguas clássicas: o chamado “método natural”, e o estudo analítico da gramática. Muitos alunos servem-se dos livros de Hans Ørberg, e muitos outros da gramática do professor Napoleão Mendes de Almeida (hoje fora de catálogo). Como o senhor vê essa contenda, e essa contraposição?

Penso que o método natural é válido e os livros de Ørberg têm muito mérito. Não é a metodologia que eu próprio sigo, pois sou adepto daquilo a que se chama o “método de leitura” (na terminologia inglesa, Reading Method), como é o caso do Cambridge Latin Course. Considero que faz mais sentido para estudantes que começam a aprender latim em idade adulta, com a finalidade de ler os clássicos latinos. Mas para faixas etárias mais jovens, o método de ensinar latim oralmente como língua para falar (e não só para ler) tem vantagens lúdicas que são importantes. A minha preocupação enquanto professor de línguas clássicas é, em primeiro lugar, ajudar os discentes a compreender da forma mais útil possível as bases da gramática. Sem essa competência, qualquer texto em latim permanece inacessível.

2O senhor obteve sua formação e lecionou por muito tempo em Lisboa e, em 2009, mudou-se para a Universidade de Coimbra. Poderia contar um pouco como sentiu esse traslado, e dar, para o público brasileiro, um panorama breve dos estudos clássicos em Portugal?

Fui estudante na Faculdade de Letras de Lisboa, de facto, e depois fui professor lá durante 20 anos. Os Estudos Clássicos em Portugal têm a feição curiosa de existirem apenas na Faculdade de Letras de Coimbra e na Faculdade de Letras de Lisboa. Afinal, Portugal é um país pequeno (10 milhões de habitantes), com uma população bastante menor do que a de Espanha (47 milhões) ou de Itália (60 milhões). Já nem comparo com os 200 milhões de brasileiros… Portanto, as opções para uma vida profissional nos Estudos Clássicos em Portugal são apenas duas: Lisboa ou Coimbra. Depois de ter experimentado Lisboa durante 20 anos, decidi experimentar Coimbra. Gosto muito de ser professor da Universidade de Coimbra e de viver nesta cidade calma e bonita. Em termos de qualidade, não vejo diferença entre os Estudos Clássicos praticados em Lisboa e os de Coimbra. As ênfases são diferentes: os autores da Antiguidade Tardia latina e do início da Idade Média latina têm mais peso em Lisboa; em Coimbra, há uma tradição forte no estudo do latim renascentista. Claro que o grego clássico e o latim clássico são fundamentais em ambas as universidades.

3Vergílio, com “e”. A grafia vai certamente causar alguma estranheza no leitor brasileiro, que pode, inclusive, vir a pensar que se trata de um modo tipicamente lusitano de dizer e de escrever, e não propriamente de uma interpretação filológica. Para estas pessoas, muito resumidamente: Virgílio ou Vergílio, e por quê?

O nome do poeta romano era Publius Vergilius Maro: não há a mínima dúvida de que a grafia certa em português deveria ser Vergílio. Os manuscritos mais antigos da obra vergiliana dão o seu nome como “Vergilius”. Ele próprio escreve com “e” o seu nome na única passagem da sua obra em que o nome aparece (Geórgicas 4.563). Na Idade Média fixou-se a tradição de grafar o seu nome com “i” (Virgílio) e é natural que para muitas pessoas essa seja a grafia mais familiar. Mas porquê Virgílio, se ele se chamava Vergílio? No século XX (sobretudo na 2.ª metade), houve a procura de voltar ao nome certo do poeta. Não me oponho de forma alguma a que as pessoas escrevam Virgílio (se gostarem mais assim), mas eu prefiro escrever o nome com a grafia antiga, Vergílio.

4Seu pai, Manuel dos Santos Lourenço, foi escritor e poeta, e publicou trabalhos de lógica, sobre ter traduzido, entre outros autores, Joyce, Wittgenstein e Romano Guardini. Esse exame, um pouco apressado, de sua obra e seus trabalhos não faz deduzir um interesse pela cultura clássica. Engana-se quem pensa isso? Como dimensiona a influência de seu pai sobre si?

O meu pai era um especialista de lógica que teria gostado de estudar mais aprofundadamente grego e latim. Ele estudou as duas línguas durante dois anos no antigo liceu português e ficou sempre com pena de não ter atingido uma competência mais desenvolvida. Em parte, eu próprio optei por Estudos Clássicos para obter a aprovação do meu pai; mas depois comecei a interessar-me por mim mesmo e a encontrar o meu próprio caminho. A influência do meu pai sobre mim foi gigantesca, no sentido em que moldou totalmente a minha vida e as opções que tomei. Seria talvez mais normal um filho reagir antagonicamente em relação ao pai e seguir o caminho onde estaria certo da desaprovação paterna; mas eu fiz o contrário disso. Na verdade, estou muito grato ao meu pai por me ter feito ver a importância de aprender latim, grego e alemão. A vontade de lhe mostrar os meus progressos foi sempre um motor importante do meu desenvolvimento. Como ele já morreu há treze anos, tenho aprendido a encontrar a minha própria motivação.

5Qual foi o primeiro contato que teve com a cultura clássica e que o encantou, e quando foi que decidiu, enfim, que dedicaria tanto de sua vida a ela?

O primeiro contacto veio justamente a partir dos meus pais: a minha mãe era professora de Filosofia e também tinha feito os mesmos dois anos de grego e de latim no liceu. Quando eu era criança, recebia como presentes muitos livros sobre cultura clássica. E havia em nossa casa dicionários e gramáticas de grego e de latim. Com dez anos eu já sabia o alfabeto grego e conseguia ler em voz alta em grego, embora não entendesse o sentido das palavras. O grego e o latim pareciam-me duas montanhas que eu tinha obrigatoriamente de escalar. Quanto à decisão de dedicar a minha vida aos Estudos Clássicos, veio aos poucos. E mesmo depois de ter tomado a decisão (e mesmo depois de já estar na carreira universitária como professor de Estudos Clássicos), nem sempre me senti totalmente convencido de que tinha tomado a opção certa. Mas hoje em dia estabilizei interiormente na certeza de que fiz bem em dedicar a minha vida ao grego e ao latim. Não são só um trabalho e uma profissão: são (a seguir ao meu casamento) a minha maior fonte de felicidade e de realização pessoal.

6O senhor lastima, em mais de uma passagem, o abandono do ensino das letras clássicas às crianças na escola de Portugal. O mesmo aconteceu no Brasil. Poderia falar um pouco sobre como vê essa perda, quais são suas conseqüências, e como sugere que se retomasse esse estudo?

O problema de se perderem estes valores é que depois se torna muito difícil repor o que ficou perdido. Fico sempre com vergonha do meu próprio país quando recebemos estudantes Erasmus que vêm de Espanha, Itália ou de outros países europeus. Portugal é mesmo a vergonha da Europa no que toca ao ensino das línguas clássicas. Os jovens europeus que chegam a Portugal para fazer um semestre na nossa universidade ficam espantados com o facto de estarmos a ensinar latim e grego a partir do zero na universidade. Para eles, é um semestre perdido em termos de aprendizagem das línguas, porque estão incomparavelmente avançados em relação aos colegas. A nossa perda é enorme, porque a consequência de não haver vários anos de latim (pelo menos) na escola é que, num curso de três anos na universidade, os alunos já não vão adquirir a proficiência que adquiririam se a universidade lhes desse um ensino avançado do latim e do grego. Recebendo, já em idade adulta, as primeiras aulas de latim e de grego na universidade, fica um pouco difícil atingir um nível mesmo excelente. É possível, claro: mas requer uma força de vontade enorme e uma capacidade de estudo fora do normal. Há sempre pessoas sobredotadas que conseguem (e eu tenho tido alunas e alunos excelentes ao longo da minha vida), mas são a excepção. Quanto a retomar o estudo: é justamente essa a intenção do meu livro Latim do Zero, dirigido a quem não teve oportunidade de estudar latim durante o seu percurso escolar, mas tem desejo de aprender a língua e de se informar sobre a literatura que essa língua veicula.

7Uma de suas grandes realizações recentes, que está ainda em curso, é sem dúvida a tradução da Bíblia. Sem que seja necessário entrar em filigranas teológicas e em posicionamentos religiosos, gostaria de saber: De que modo o empenho nesse trabalho e o contato com esses textos modificou sua vivência espiritual, seu sentimento bem concreto do que nos transcende?

Não tenho uma resposta muito clara para esta pergunta tão interessante: a minha vivência espiritual nem sempre está ancorada na religião entendida em sentido formal. Fui educado como católico (como a maioria dos portugueses) e interesso-me profundamente pelos inícios do cristianismo, antes de ter virado a religião do Estado no século IV. A tradução do Novo Testamento é sem dúvida o trabalho mais importante que fiz na minha vida — um trabalho que ainda se processa na minha cabeça, mesmo com os livros já publicados. Não parei de estudar o Novo Testamento em grego e estou certo de que não pararei até morrer. O Antigo Testamento desperta em mim sentimentos diferentes, porque aí o meu interesse é mais histórico e filológico. Não sinto essa ligação visceral ao texto do Antigo Testamento porque, ao contrário dos teólogos cristãos, eu não encontro lá Jesus Cristo. Basicamente, é Jesus que me interessa e fascina. De qualquer forma, o estudo e tradução da Bíblia não fez de mim um católico mais convicto, mas tem vindo a ensinar-me a encontrar o meu próprio caminho como seguidor de Jesus. Talvez não seja à toa que a primeira designação para o cristianismo tenha sido “O Caminho” (isso lê-se nos Actos dos Apóstolos). Cada pessoa tem de encontrar o seu Caminho e seguir Jesus do modo que souber e conseguir.

8Uma pergunta mais direta a respeito do livro que ora lançamos: Por que “Nova”? Além de trazer atualizadas as descobertas dos estudos filológicos e lingüísticos, qual foi sua grande ambição ao reformular a gramática latina para o estudante contemporâneo?

A designação “Nova” reporta-se sobretudo à metodologia implícita no próprio “Método de Leitura”. A gramática está escrita para orientar as pessoas para a leitura do latim, dando-lhes as informações necessárias para entender a morfologia e estrutura sintáctica das frases latinas. É “Nova” porque tenta dispensar o inútil numa primeira fase de aprendizagem. Não quero que as pessoas sintam que estão à procura de uma agulha num palheiro (como se diz em Portugal) quando precisam de informações concretas sobre como funciona a frase latina e, sobretudo, como entender os usos do conjuntivo (subjuntivo) em latim. Também é “Nova” na ordenação da matéria morfológica: pronomes e adjetivos são apresentados depois dos verbos.

9Gostaria de pedir, para encerrar, que nos dissesse duas coisas: Quais os versos mais belos, tanto na literatura grega como na latina, que o senhor traz de cor; e qual o principal conselho ou incentivo que poderia endereçar ao estudante que pretenda se lançar ao estudo de uma dessas línguas, e que vá iniciá-lo do zero.

Começando pelo conselho: o aspecto mais importante a ter em conta na aprendizagem do latim é que estudar trinta minutos todos os dias é preferível a estudar muitas horas de forma esporádica. É preciso dar continuidade ao trabalho de aprendizagem; também é preciso avançar devagar, mas com regularidade. Cada uma das 50 lições do livro Latim do Zero precisa de vários dias para ser processada no cérebro de quem aprende. O melhor é ler e reler a lição durante vários dias seguidos e só avançar para a lição seguinte quando se tiver entendido tudo da lição presente. Quanto a frases de que gosto especialmente na literatura grega e latina, é difícil para mim escolher, porque seria Vergílio de fio a pavio… gostaria um dia de aprender grandes “nacos” da Eneida de cor. Mas uma frase de que gosto muito é Eneida 1.461: sunt hic etiam sua praemia laudi (“também aqui o valor tem os seus prémios”). E esta frase da Odisseia (12.188) sintetiza o que acontece a quem aprende latim e grego: “depois de se deleitar, prossegue caminho mais sabedor” (τερψάμενος νεῖται καὶ πλείονα εἰδώς).


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