CRÔNICA | Surra de pau na padoca

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Hitchcock, Shakespeare, Machado e pancadaria 

À roda da mesa, caro leitor, comíamos, bebíamos e, ainda fazendo jus às palavras do Sábio Salomão, alegrávamo-nos. Porque o autor do Livro do Eclesiastes diz que, nesta vida, não há coisa melhor senão comer, beber e se alegrar no trabalho que se realiza debaixo do Sol. E nós aceitávamos gratamente a realidade bíblica — e com que facilidade! Eu subscrevo a sentença do Rei Salomão, mas com um adendo; a bem da verdade, uma explicação: o que dá sabor ao “se alegrar” do sábio provérbio não pode ser outra coisa senão a prosa, a prosa inteligente.

E nós, à roda da mesa, conversávamos sobre temas inteligentes. Escolha o leitor os seus amigos com sabedoria, porque nada neste mundo é mais pernicioso do que conversas estúpidas. É o velho e infame costume de “jogar conversa fora”; mas, atenção!, o que se joga fora com a conversa é o próprio aparelho que a cria: a inteligência. Daí que é motivo de grande alegria o estar sentado à mesa duma padaria qualquer em companhia de gente entendida – de temas e em graus variados, é verdade, mas entendida, e isto basta.

Na padaria V éramos pouco mais que meia dúzia protegidos da ameaça da chuva sob o toldo do estabelecimento. Ameaça esta, devo dizer, que não passou daí, pois que não choveu. A despeito da tempestade da véspera e da carranca do dia, não houve chuva. Mas ficamos sob o toldo, ao ar livre, porque havia muitos dentre nós, a maioria, que não passava sem acender um American Spirit, Camel, Rothmans, Dunhill e… só não me recordo de ter visto alguém exibir um Marlboro. Não. Este não havia. Mas um amigo distinto acendeu um Monte Christo; uma cigarilha – ou “purito”, como ele dissera — da qual emanava deliciosa fumaça. Fumaça densa e perfumada.

Os temas das conversas, leitor amigo, eram vários. Posso citá-los aqui, mas farei de memória, pois não tomei nota. Daí que, se algum amigo que lá esteve e que me lê agora se recordar de algum detalhe que deixei escapar, pode fazer o favor de ajudar a compôr esta crônica e remeter-nos as suas reminiscências que, faço votos, sejam mais precisas que as minhas. Por agora, valho-me do que tenho ainda fresco na memória. Sentados, nós falávamos — não sei bem se de início ou mais para o fim – sobre filmes; sim, uma amiga citou Hitchcock e um filmão famoso. Mas, cáspita!, esqueci-me do título.

De todo modo, o que vale relatar é que nos demoramos em analisar, de maneira mais ou menos apaixonada, as novas técnicas de filmagem criadas pelo cultuado diretor britânico. Impressionante foi a expressão facial da amiga à minha esquerda quando, ao falar sobre o filme The Birds, dava especial ênfase aos jogos de câmera empregados na edição a fim de provocar vertigem no telespectador. Mas isto foi depois! Como pude esquecer!? Lembro bem: começamos com um livro de receitas; sim, um utilíssimo livro da ciência da Gastronomia. A dona do livro era a mais moça do grupo, mas isto não é importante; só faço questão de citá-la aqui porque ela foi a primeira a tomar assento. E lá vem o garçom. 

Se eu não disse antes, fino leitor, digo-o agora: de todas as maravilhas feitas pela mão do homem nos recônditos mais obscuros das cozinhas das padarias, nenhuma é mais louvável do que o “Pastel Gaúcho”. Eu sou paulista. O nome não é dos melhores, tenho consciência; mas o paladar salva o que fez perder o marketeiro da padoca. É a mais pura verdade. A iguaria só não faz frente à autoridade inabalável da Pizza. O leitor deve estar salivando e a perguntar o que é um “Pastel Gaúcho”. Não quero me alongar no relato, tenho de justificar o título da crônica; mas, em suma: é uma bomba de queijo com carne vermelha da mais primorosa qualidade. E há também outros sabores, tais como calabresa e bacalhau – mas o meu preferido é mesmo o de carne. Está feito. Vá o leitor à padaria V, à saída do metrô Paraíso, e comprove por si se o que digo não é verdadeiro.

De relance, enquanto prosava com a amiga ao lado, e às vezes com o amigo distinto – aquele do purito Monte Christo – ao lado desta, eu captava os temas das conversas adjacentes. Um sujeito aparentemente entendido apresentava um ensaio sobre Bitcoins, mas não tive gosto pelo assunto e tornei à minha amiga. Shakespeare, Otelo e um convite para participar de um clube de leitura – mais um! Aceitei já arrependido. Entenda, leitor amigo, não é que eu seja preguiçoso ou tenha má vontade, é que levo uma vida atribulada. Dito de modo direto: trabalho com o cérebro, isto é, a leitura e os estudos são também o meu ganha-pão. Portanto, não me venha chamar para ingressar em mais um projeto de estudos. Mas, como dito, eu aceitei. Pela amiga, não por Shakespeare – o Bardo de Avon que fique esperando na prateleira.

Já ia passar despercebido: Dom Casmurro. Veja como sou esquecido – é o cansaço, tenho trabalhado tanto. Não disse que era Domingo, e que eu havia decidido, a título de férias, ler um romance. Sim, também é possível ler para descansar; aliás, mudar de assunto é já um descanso. E era um romance dos grandes, um clássico: reli Dom Casmurro. Lembro-me de que falei com a amiga sobre a traição, e como a infidelidade conjugal empalidecia quando percebíamos que a essência da narrativa era a dinâmica crescente da loucura do narrador, a destruição da sua consciência. Bentinho jurava de pés juntos que Capitu o traíra; mas Bentinho, fino leitor, enlouqueceu. Dom Casmurro é uma tragédia.

Ficamos assim, a ir e vir com estes temas. Cinema, Literatura e suas adjacências. Ao me levantar a fim de ir ao toilette, senti um pingo d’água a atingir-me de raspão no braço direito. O leitor atento lembrar-se-á de que não choveu; não, efetivamente, mas a chuva ameaçara — e isto também já foi dito. O sol se punha. Mas os serviços do prestimoso garçom fizeram recobrar os ânimos do grupo, ninguém dava sinais de tédio ou desinteresse. O nome do garçom amigo, quero registrá-lo, era Rogério, bravo guerreiro da labuta paulistana. Rogério. Soubemos, por uma conversa transversal, que ele havia operado das amígdalas, e, ipso facto, podia beber “quatro ou cinco litros d’água gelada por dia” sem nem se preocupar com as ameaças do resfriado. Bravo Rogério!  

Vejo que o leitor já está impaciente; quer saber enfim quem deu ou levou a tal surra de pau. Eu direi logo. Digo já: foi uma moça que levou, e foi coisa horrível. Vi a cena. Do argumento não sei das premissas nem da conclusão; limito-me, portanto, a narrar simplesmente. Primeiro ouvimos os gritos, os impropérios e os sons próprios das coisas que caem, que quebram; depois as ordens desesperadas das testemunhas: “Parô! Parô! Parô!”. Era o gerente da padoca V – e sinto dizer, pois gosto imenso desta padoca – que surrava impiedosamente a pobre mulher, uma andarilha. Um homem – aparentemente outro mendigo – tentava a todo custo acudi-la: “Você bate em mulher, é?!, Você bate em mulher?!”. Mas seus contragolpes não foram lá muito eficientes: o gerente da padaria desceu um bastão — que não devia ser de madeira, embora eu tenha usado o termo “pau” — na cabeça da coitada. É evidente que o máximo que ela pôde fazer foi explodir em impropérios. E depois chorar. 

Não posso concluir porque não fui testemunha do desfecho, leitor. No entanto, se isto atende a uma conclusão: vi o gerente enfiar-se lá para o interior da padoca, de onde não mais saiu. Tomei o rumo da estação de metrô tão logo pude pensar claramente. E já no assento do comboio tive remorso ao perceber que minha maior decepção havia sido a indigestão do meu “Pastel Gaúcho”. O garçom tirara os pratos há pouco, o expresso cremoso trazia um docinho como mimo ao cliente. Registro aqui o que devia registrar no início: saíamos da Missa. Confissão e comunhão. Vê, leitor amigo, o tamanho da nossa miséria?

***


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8 COMENTÁRIOS

  1. [Se eu não disse antes, fino leitor, digo-o agora: de todas as maravilhas feitas pela mão do homem nos recônditos mais obscuros das cozinhas das padarias, nenhuma é mais louvável do que o “Pastel Gaúcho”. Eu sou paulista. O nome não é dos melhores, tenho consciência; mas o paladar salva o que fez perder o marketeiro da padoca.]

    Que nome espetacular! Absolutamente condizente com a qualidade reconhecida do prato.

    São Paulo surpreendendo positivamente!

  2. Hoje ao lê-lo percebi nas entrelinhas algo de Manchado de Assis e qual não foi a minha surpresa quando mencionou Dom Casmurro. Parabéns Sr. Marcolino.

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