O Estado disse “não!”
Em O Antigo Regime e a Revolução, o ensaísta Alexis de Tocqueville, numa abordagem bastante original para a época, apresentou ao leitor as causas da Revolução Francesa. No ensaio publicado em 1856 o autor demonstrou como o modus operandi da Revolução que destruiu a França em 1789 já estava presente na esfera político-administrativa do país muito antes da queda da Bastilha — evento, aliás, meramente simbólico, porque, como explica Tocqueville, a França já era revolucionária antes de Luís XVI perder a cabeça na guilhotina.
A originalidade da abordagem de Tocqueville, cientista político e escritor de talento, está na forma como ele esmiuça a dinâmica social e política da França antes do advento da tirania do Estado Revolucionário moderno. Seu ensaio, para além de ser evidentemente um marco na historiografia moderna, é também uma prova de coragem. Porque o autor, antes do surgimento das benesses da internet, como o Word, WhatsApp, E-mail ou computador; e antes também dos benefícios da eletricidade, como o telégrafo, teve acesso aos registros paroquiais das vilas mais distantes, dos vilarejos mais remotos da França em busca das provas documentais da sua teoria. E ele as encontrou. Sem dúvida, ao menos pelo seu trabalho jornalístico, de pesquisa in loco, o ensaísta mereceu um prêmio.
Tocqueville não tinha nem mesmo uma máquina de escrever — equipamento que só passaria a competir com os calígrafos e vendedores de bico de pena no final do século XIX. Mas o que ele fez de tão “revolucionário” para a ciência política? Alexis de Tocqueville demonstrou que toda a estrutura política, administrativa e cultural sobre a qual a máquina da Revolução foi posta já estava prontinha, à espera dos prestimosos burocratas estatais. O Antigo Regime, grosso modo, o Absolutismo Católico francês foi o culpado pela centralização excessiva de poder que atendeu a todas as demandas da Revolução — incluído aí, evidentemente, a “morte à infame”, como Voltaire referia-se com desprezo à Igreja Católica.
Provavelmente, não há na história moderna celebração cívica mais descabida e mentirosa do que o 14 de julho em Paris. Aquilo não foi uma libertação; foi, a bem da verdade, um aprisionamento. Um professor de história, com quem eu conversava à entrada da Biblioteca Mário de Andrade, contou-me algo intrigante sobre as pesquisas de Tocqueville. Belga radicado no Brasil havia mais de 30 anos, este docente aposentado disse que tivera acesso — quando ainda morava na Europa — a um conjunto de anotações originais do ensaísta francês. Nos manuscritos, o professor encontrara as impressões que o autor de O Antigo Regime e a Revolução tivera ao se deparar com o caso de um sujeito que não pôde morrer porque não havia recebido o alvará do Estado.
O caso, porém, terá de ficar para uma próxima coluna, porque eu preciso de tempo para burilar a transcrição da conversa que tive com o professor.
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