VITOR MARCOLIN | O perdão enfurece a mídia

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

O surpreendente caso de Natascha Kampusch

No livro 3096 dias, Natascha Kampusch descreve, com a lucidez típica das pessoas que enfrentaram grandes tribulações sem enlouquecer, sua experiência de cativeiro. Ela esteve sob o poder de um criminoso psicótico identificado com o nome de Wolfgang Přiklopil, um técnico de comunicações que trabalhava para uma grande empresa alemã — o típico sujeito que mantinha uma aparência de normalidade só para esconder o monstro que vivia dentro de si. Natascha foi sequestrada por Wolfgang quando tinha 10 anos de idade; ela estava a caminho da escola do seu bairro no subúrbio de Viena, Áustria. E dos 10 aos 18 anos a menina viveu aprisionada num cubículo no subterrâneo da casa do sequestrador.

O relato é narrado em primeira pessoa; o leitor tem, portanto, acesso à perspectiva da vítima, à visão de mundo de uma menina que passou o fim da infância e toda a adolescência como escrava de um louco. A curta vida pregressa de Natascha havia sido marcada pelos conflitos familiares, fora afetada pela crise conjugal dos seus pais. Ela vivera num lar instável: “Essa oscilação entre atenção e negligência em um mundo de relações superficiais acabava com a minha autoconfiança. (…) A criança pequena e autoconfiante deu lugar, aos poucos, a uma menina insegura, que deixou de confiar nos familiares”.

Durante os 3096 dias nos quais viveu presa no cativeiro, tendo de suportar toda sorte de violência física e verbal; humilhações morais e pressão psicológica dignas do treinamento do Bope ou das tropas israelenses, Natascha desenvolveu meios de não enlouquecer. O principal desses meios, porém, não agradou a imprensa sensacionalista. A menina havia sido sequestrada no dia 2 de março de 1998 e conseguiu fugir no dia 23 de agosto de 2006. Durante o curso das investigações, a polícia austríaca foi negligente na apuração de uma pista que poderia ter levado à libertação de Natascha ainda nos primeiros dias do sequestro. Mas não. Entraves burocráticos e políticos ajudaram — indiretamente, quero acreditar — Wolfgang, o sequestrador. A vítima atribuiu sua sobrevivência não a outra coisa, senão ao perdão. O que desagradou a mídia.

Frequentemente, a imprensa, ávida pela atenção dos leitores, inventa termos que não servem para descrever a realidade, mas que são assaz eficientes para estampar capas de matérias rentáveis. O termo “Síndrome de Estocolmo”, cunhado com o objetivo de descrever a cooperação voluntária — e até o afeto — da pessoa da vítima pelo seu sequestrador, é uma dessas intromissões midiáticas no âmbito da linguagem. Se a tal “síndrome” tem lá as suas assertivas, as suas justificativas psicológicas e psiquiátricas, elas não servem para a Natascha. Não.

“O único modo de lidar com isso era perdoar as transgressões do sequestrador. Eu o perdoei por me sequestrar e por todas as vezes que me bateu e atormentou. Perdoá-lo me deu poder sobre minha experiência e tornou possível conviver com ela. Se eu não tivesse adotado essa atitude instintivamente desde o início, provavelmente teria me consumido em raiva e ódio — ou sido destruída pelas humilhações a que era submetida diariamente. (…) Ao perdoá-lo, afastei suas ações de mim. Elas não podiam mais me diminuir ou destruir”.

Mutatis mutandis, Natascha Kampusch teve uma experiência análoga à de Anne Frank. Assim como a judia confinada no esconderijo em Amsterdã, a mente, o ser da menina presa no cativeiro em Viena foi submetido a um conjunto de experiências-limite que, se não fosse por uma forte disposição moral — desenvolvida durante a tribulação —, ela jamais teria sobrevivido. E essa disposição implica a compreensão abrangente, profunda da condição humana que é desprezada pelos vendedores de manchetes jornalísticas: o mal é uma realidade, mas o perdão também o é. O perdão liberta. E ele só pode advir da liberdade do indivíduo que, ainda que seja incapaz de verbalizar — como a menina no cativeiro —, entende que esse é o único caminho a seguir. No seu cativeiro, Natascha entendeu a realidade da permanente confrontação dialética que existe no âmago da alma humana.

“Todos se sentem desconfortáveis quando categorias como Bem e Mal começam a ruir e é preciso enfrentar o fato de que o Mal personificado tem um rosto humano. O lado escuro não cai simplesmente do céu, e ninguém nasce um monstro. Somos formados pelo contato com o mundo, com as outras pessoas, e é isso que nos torna quem somos. Temos, portanto, a responsabilidade final pelo que acontece em nossa família, em nosso ambiente. Admitir isso para nós mesmos não é fácil. E mais difícil ainda é quando alguém segura um espelho que nos obriga e enxergar”.

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Destaco a excelente tradução de Ana Resende para a Verus Editora.


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