VITOR MARCOLIN | Dai a César o que é de César

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Surpresa na Sé  

José da Silva é um sujeito comum que, se não fosse pelo sonho que me relatou ontem, passaria pela História sem jamais ser notado. Eu estava à saída da Sé, com a atenção dividida entre pombos e mendigos, quando o vi acercar-se de mim. Evidentemente, desconfiei e já ia tornar à segurança do interior do templo gótico quando, fatalmente, cedi ao impulso da gentileza e passei a ouvi-lo. Obrigo-me a dizer, leitor, que tive de fazer uma ou outra correção na transcrição do relato — mas só porque quis garantir a máxima coerência da narrativa. Eis o que me contou José da Silva:

“Eu sonhei que acordava numa bela manhã de sábado de Mistérios Gloriosos e, antes de pôr os pés no chão, antes mesmo de persignar-me, senti que este dia seria diferente. Aliás, acho que não foi bem um sentimento, como uma emoção; foi mais uma certeza, um tipo de convicção. Tudo seria diferente… Levantei-me, e, ainda de cueca, abri a janela do quarto; na véspera eu havia comido cuscuz com leite — e acho que exagerei no leite. Ah!, pela manhã eu fico de muito bom humor. Um ventinho gelado me pegou desprevenido, vesti a roupa e saí do quarto.

Na cozinha, sobre a mesa, uma pilha de contas a pagar me esperava, mas o café estava delicioso — amo o gosto do café. Saí para o trabalho. A verdade é que, no meu sonho, só pude perceber o que seria diferente quando pus a cara fora de casa. Era o mundo, o mundo estava diferente. Atravesso o portão de casa e o que encontro? Ordem, decência… justiça. Sim, meu amigo, encontro justiça. E eu não precisei caminhar para longe a fim de perceber esta virtude cardeal, porque ela estava ali; estava, aliás, em toda parte. O itinerário até o ponto de ônibus não é comprido, de maneira que fiquei surpreso com as maravilhas que fui encontrando por onde passava.

A calçada estava impecável, refiro-me àqueles detalhes que perfazem uma típica calçada de um bairro de subúrbio: sujeira, terreno irregular, fios de energia, galhos d’árvore, e todos os outros elementos de desordem — eles não estavam lá. Isto porque, durante a madrugada, eu presumo, os funcionários da prefeitura vieram e consertaram tudo. Puseram cada coisa em seu devido lugar, e deram um fim adequado às coisas que não deviam estar lá. Para começar, a demarcação do meio-fio havia recebido pintura nova; o gradil dos cercados que protegiam as árvores ornamentais também foi revitalizado, aliás, a minha rua, que até a véspera não contava com mais de meia dúzia de árvores malcuidadas, agora exibia árvores a perder de vista, como numa alameda digna de barões. Não havia sequer uma folha, uma bituca de cigarro, um embrulho de bala no chão. Até o terreno, que aqui e acolá apresentava algumas irregularidades, havia sido perfeitamente aplainado. Trabalho feito com esmero no silêncio da madrugada.

Ao chegar ao ponto de ônibus a surpresa não foi menor: os assentos, antes de plástico que, de tanto levarem bicudas da molecada de rua, estavam só aos tocos presos nos parafusos de ferro, agora pareciam poltronas dignas da realeza. O que eu estou dizendo?! Não pareciam, eram poltronas; assentos largos, macios, e com apoio para a cabeça. O teto da cabine era iluminado por lustres à Luiz XIV; as placas de sinalização estavam impecáveis, e os registros dos horários e itinerários dos ônibus eram exibidos numa delicada caligrafia cursiva inglesa. Mutatis mutandis, aquele ponto de ônibus parecia um camarote exclusivo do Mvnicipal.

O ônibus, no entanto, chegou antes que eu pudesse contemplar a maior parte dos detalhes daquela cabine extraordinária em todos os sentidos. Era como se os serviços públicos, aqueles que são financiados pelos pagadores de impostos, tivessem, da noite para o dia, dado um salto qualitativo incrível. Você não imagina o que aconteceu no ônibus, a forma como me trataram, a (…)”.

Perdão, leitor, mas o relato de José da Silva termina assim, desta forma abrupta e injusta. Isto porque, no momento em que o homem preparava-se para narrar as demais maravilhas realizadas com o dinheiro dos impostos, eis que do interior da Sé o padre dera início à homilia. Eu, porém, ainda subalterno à gentileza — agora, mais do que nunca, descabida, eu sei — permaneci um pouco mais, na esperança de encontrar um meio diplomático de me livrar do sonhador. A verdade é que não precisei, pois ele, ao ouvir o padre dizer “meus filhos, Nosso Senhor nos ensinou que devemos dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, entrou comigo.

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