VITOR MARCOLIN | Clínica de eufemismo

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

A dívida de Mercedes

Tudo aconteceu muito rápido. Ao entrar, a moça deixou o seu guarda-chuva dentro do grande cesto de plástico, à entrada da clínica. No recipiente improvisado havia dois outros guarda-chuvas. E, apesar do mormaço do início da primavera, fazia bastante frio no interior do estabelecimento médico.

— “Ai!, boa tarde! Moça, pelo amor de Deus, desliga esse ar-condicionado!”.

— “Boa tarde. Claro! É que lá fora tá muito calor, né?”

— “Aff! Brigada”.

— “Você tem hora marcada?”

— “Tenho sim. Três e meia. Que horas são?”

— “Três da tarde. Pode sentar. Daqui a pouco o Doutor chega. Você já o conhece, né? Ele falou com você?”

— “Sim, é o Dr. Pedro. Nós nos falamos ontem. Ele deixou por quinze mil”.

— “Certo. Pode sentar, então. Eu vou abrir uma nova ficha”.

Desde que entrara na clínica, a moça, distraída e irritada, não percebeu que a recepcionista não era a única alma vivente ali. Não. Havia um homem sentado a um canto. Figura estranha. O susto foi inevitável:

— “Ai!, meu Deus do céu! Que susto, meu senhor! Por que não avisa que tá aí? Dá ‘boa tarde’, pelo menos. Caramba”.

— “Eu quis dar ‘boa tarde’ a senhorita só quando você notasse a minha presença. Boa tarde!”.

O homem usava um impecável conjunto social — e óculos grandes, com lentes grossas, que realçavam seus penetrantes olhos azuis. Ele sorria amavelmente.

“Aff!, tiozinho esquisito”, disse a moça baixinho. Ela parecia perturbada.

— “Filhinha, por que não se senta? Você não parece bem”.

— “Vish! Dá licença, tiozão! E tira os olhos da minha barriga!”

— “Por que esse ódio? Isso é maravilhoso!”.

— “O quê?”.

— “Sua gravidez. Eu disse que é uma coisa maravilhosa. Não é?”.

— “Claro que não. Porra! Eu quero abortar. Tô aqui pra isso! Esse estabelecimento é uma clínica de aborto! Vem cá, quem é você? Escuta, moça, quem é esse tiozão?”

A recepcionista não entendeu a pergunta. Gentilmente, pediu para a grávida buscar assento — e ofereceu água e café.

— “Não. Brigada. Tô bem”.

O homem sentou-se ao lado da mulher grávida.

— “Posso lhe dizer uma coisa?”

— “Vai, tiozão, desabafa o coração”.

— “Não faça isso. A vida é um dom, é um presente de Deus. Não é justo que você entregue o seu filho à morte simplesmente porque não quer assumir as responsabilidades. Você realmente acredita que aqueles que se ofereceram para matar o seu filho querem o seu bem, a sua felicidade? Você realmente acredita que alguma coisa boa pode vir de um ato tão injusto? Diga-me, filhinha, você é burra?

O Dr. Pedro chegou, e jogou o seu guarda-chuva no cesto de plástico — no qual agora só havia um guarda-chuva. Ele parecia ser um homem vaidoso: bem vestido, falava com a recepcionista como se conversasse com uma amante; sorria maliciosamente enquanto comia a moça com os olhos. Finalizou as boas-tardes com um longo beijo na mocinha, um beijo viril, é verdade. Ardente e voraz.

— “E agora, Mercedes? Perdi quinze mil reais. Vai, levanta! Vamos lá para a minha sala que agora você me deve!”.

***


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