VITOR MARCOLIN | Bolo de chocolate

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

O universo não é fruto do mero acaso

Notícias sobre as discussões “científicas” acerca da estrutura do universo aparecem com uma frequência curiosa nas listas do Google. Semanalmente, pelo menos, o leitor é posto a par de algum novo debate entre os titãs do establishment acadêmico cujo desfecho, invariavelmente, celebra a manutenção do status quo do modelo cosmológico. Normal. Quem lê as notícias sobre ciência no Google com a esperança de obter respostas coerentes com o senso comum ilude-se: as explicações são tão prováveis quanto a demonstração do Teorema de Pitágoras, que só existe enquanto abstração matemática.

Ao ler uma dessas notícias, recentemente, lembrei-me de uma anedota que eu ouvira de um crítico mui bem humorado da Ciência Moderna. A história ilustra perfeitamente a realidade de um status quo mais provável, mais objetivo e mais preocupante do que a mera narrativa hipotética — e megalomaníaca — sobre o funcionamento de todas as coisas. Narrativa esta, aliás, sem graça, porque não deixa a mínima margem para o mistério. A realidade que preocupa, no entanto, é a do estado de coisas da consciência do homem comum, do leitor das notícias do Google que não consegue mais dimensionar o prejuízo da crença nas explicações esdrúxulas.

Era a história de Carlos, o bombeiro.

Carlos era um solteirão que morava com a mãe; ele orgulhava-se, no entanto, de arcar com todas as despesas da casa. Dava dinheiro à velhinha e fazia questão, com uma prestimosidade de filho exemplar, de acompanhá-la aos exames médicos. Se havia algo em sua vida do qual o jovem bombeiro pudesse se orgulhar era o zelo com o qual ele cumpria à risca o IV Mandamento do Decálogo. Carlos era um filho dedicado, do tipo que toda mãe sonharia em ter. Contudo, havia algo em Carlos que incomodava profundamente sua mãe: o rapaz era um ateu fervoroso.

Durante o curso de formação de bombeiro profissional civil, Carlos, que havia recebido de sua mãe uma educação católica, não resistiu aos assédios de uma colega de classe que flertava com o ateísmo; a fim de conquistar a garota, o jovem bombeiro passou a ler os principais autores ateus que lhe caíam nas mãos. Não demorou muito para que o rapaz se visse vítima de um emaranhado de dúvidas do qual não podia se livrar. Os conselhos de sua pobre e doente mãe não mais surtiam efeito em sua mente cauterizada.

Contudo, a despeito desse ponto nevrálgico, a relação entre mãe e filho seguia maravilhosamente bem. O rapaz saía pela manhã com a bênção da velhinha, ia à sua labuta cotidiana de salvamentos e combate a incêndios, e depois regressava ao lar onde, invariavelmente, o jantar o esperava. À mesa, mãe e filho recusavam-se a falar sobre o tema delicado: Deus. Para Carlos o Criador simplesmente não existia; para a sua amável mãe, no entanto, Ele era o destinatário das suas preces constantes nas quais Carlos era o único tema.

A mulher sabia, melhor do que qualquer outra, como demonstrar amor pelo filho de forma eficiente. Ela cozinhava com maestria, domínio e arte. No café da manhã de Carlos havia pão caseiro recheado com queijo mozzarella e azeitona seguido de bolo de laranja, bolo de fubá, cuscuz, goiabada, doce de leite e, às vezes, torresmo. Era uma maravilha, um primor! Ela dedicava-se com tamanha devoção à dieta do filho que não se importava se o rapagão estava engordando para além do esteticamente aceitável pelo consenso social. Nada de discussão sobre a existência de Deus. Na casa de Carlos sua mãe só fazia rezar e cozinhar.

Num belo dia — ordinário, porém belo, porque era quase dezembro e o sol de verão já ameaçava –, Carlos saiu para atender a um chamado urgente, um caminhão de uma transportadora de alimentos batera, tombara e estava a arder em chamas. O motorista, felizmente, safou-se com a perna quebrada. Carlos e sua equipe foram céleres e agiram com máxima eficiência. Ao carregar o motorista infeliz que gemia de dor até a ambulância, Carlos podia ouvir baixinho um “Deus abençoe, meu filho” repetido pela voz murmurante do pobre homem ferido. O bombeiro ficou com aquilo na cabeça. Sentia-se confrontado.

Mas o dia de labuta acabou, e Carlos foi para casa. A lembrança do jantar que o esperava chegou-lhe como um alento. “Sua bênção, minha mãe?”, disse o homem ao encontrar a velhinha na porta de casa, à sua espera. “Deus te abençoe, meu filho!”, respondeu ela. Havia, no entanto, algo de estranho no semblante da velhinha, um quê de galhofa, como se ela tivesse planejado um atentado contra o filho. Tão logo o rapaz põe os pés na cozinha, exclama, surpreso: “Uau!, mamãe, que bolo maravilhoso!”.

Sobre a mesa havia um soberbo bolo de chocolate coberto com mousse de limão e salpicado com rapinhas da casca da fruta cítrica aqui e acolá. O espanto de Carlos deu-se porque o rapaz havia dito à sua mãe, semanas antes, que desejava comer exatamente este bolo. Era um prato clássico cuja receita a mãe de Carlos herdara de sua avó. Depois de exclamar, Carlos esperou por um momento a resposta da velhinha; mas ela nada disse. “Ué!, mamãe, cadê você?”. Dirigindo-se à sala, Carlos dizia: “Obrigado pelo bolo, mamãe!”. A velhinha estava sentada a coser em sua poltrona de vime. “Qual bolo, meu filho!?”, perguntou ela, “ora, o bolo de chocolate com mousse de limão que a senhora fez!”, respondeu Carlos já meio atônito. “Eu não fiz bolo nenhum, menino; espere que depois do jantar tem goiabada de sobremesa”, disse ela.

Carlos teve um sobressalto. Tornou à cozinha e viu que, de fato, o jantar estava pronto, sobre o fogão; mas sobre a mesa lá estava o bolo de chocolate. “Já sei, mamãe”, ele voltou a dizer à mãe, “foi um presente, não é? Alguém trouxe o bolo para nós. Que ótimo! Pelo menos a senhora não teve o trabalho para prepará-lo”. Friamente, a mãe do rapaz disse: “Não, Carlos, aquele bolo surgiu por acaso sobre a mesa da cozinha. Ninguém o trouxe, ninguém o fez, ninguém o comprou; ele surgiu por acaso. Mas não quero que você se empanturre de bolo depois do jantar, tem de comer também a goiabada que eu preparei”. “O quê?!”, disse Carlos, contrariado, “como assim ‘surgiu por acaso’, mamãe? Vamos, eu sei que a senhora não é desse tipo de brincadeira. Foi a minha prima Sofia que o trouxe, não foi?”. “Não, não foi a Sofia, Carlos, eu já disse”, respondeu sua mãe, “o bolo surgiu por acaso”.

— “Tá bem, já chega, mãe. Olha, eu tô cansado, tive um dia difícil. Hoje atendi a um chamado de emergência, um caminhão bateu, tombou e pegou fogo; quase que o motorista morre carbonizado. Mas graças a Deus eu consegui salvá-lo… graças a Deus… eu… mãe, olha eu tô cansado. Que história é essa do bolo de chocolate que surge do acaso?”.

Assumindo uma postura séria que também surpreendeu o filho, a velhinha disse:

— “Eu explico, meu filho, a resposta é ligeiramente complexa, mas creio que você entenderá. Sente-se aqui perto da mamãe”.

Carlos sentou-se profundamente acabrunhado. Ele nunca havia visto sua mãe falar assim.

— “O bolo de chocolate que está sobre a mesa surgiu, como eu havia dito, por acaso. Tudo o que eu posso fazer, meu filho querido, é explicar-lhe o processo. Foi assim: um caminhão que transportava produtos de reposição para um supermercado tombou na via expressa depois de colidir, por acidente, com um carro funerário. Oito minutos e trinta e sete segundos depois da colisão, em função do vazamento do combustível, houve uma pequena explosão que provocou um incêndio. No compartimento de carga havia muitos e muitos produtos alimentícios, dentre os quais ovos, farinha de trigo, manteiga, açúcar, fermento, leite, chocolate e limão. Subitamente, uma sucessão de pequenas explosões atingiu o compartimento de carga, fazendo com que os ingredientes, espalhados e devidamente misturados, fossem submetidos à pressão, à temperatura e ao tempo ideal para o cozimento: 180° por 40’. Por fim, o material comestível repousou sobre uma porção da lataria retorcida do caminhão com as exatas dimensões de uma fôrma de bolo. Um dos bombeiros que atendeu ao chamado recolheu a guloseima e, ao passar defronte à nossa casa, deixou-o aqui. Não foi sua prima Sofia. Aliás, quer chamá-la para comer o bolo conosco?”.

Carlos estava pálido, desconcertado, desnorteado, triste. Sua mãe amavelmente pousou a mão sobre o ombro do filho e concluiu:

— “Carlos, meu filho querido, você não é capaz de acreditar que um simples bolo de chocolate veio à existência como fruto do mero acaso, mas acredita com todas as suas forças que o universo surgiu do nada. O universo, meu filho, é muito mais complexo do que um bolo de chocolate, há muito mais variáveis a considerar. Você realmente acha razoável defender que a sua existência é o resultado aleatório de um acidente? Meu filho, o que você diria se, depois que eu ouvisse o seu ‘eu te amo’, eu perguntasse ‘por quê’? Carlos, nós somos mais, muito mais do que a matemática, a física, a química, a biologia, a filosofia, a cultura ou a política tenta nos definir. Você não é um número numa planilha, meu filho, ou um mero amontoado aleatório de células cuja consciência não passa de um vulgar conjunto de ligações eletroquímicas entre os neurônios do cérebro. Eu sou sua mãe e não admito que você seja estúpido o bastante para não acreditar em Deus”. 

Depois do jantar e enquanto deliciavam-se com o bolo de chocolate, mãe e filho falavam sobre a missa do dia seguinte. Estavam entusiasmados.

***


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