VITOR MARCOLIN | Birra de criança: lição evangélica

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Sou do tempo da TV analógica, quando vivíamos à mercê da eficiência das gambiarras feitas com a antena. Se Rupert ou Tintin saísse de sintonia, corríamos até a cozinha, onde pegávamos os refugos de palha de aço que a mãe usava para arear as panelas. Com notável senso de urgência — porque o desenho estava acabando —, envolvíamos a extremidade d’antena da TV com o aço da palha na esperança de que o procedimento restaurasse a imagem no ecrã. Mas, nada. Aliás, a tal gambiarra dificilmente surtia efeito positivo. Eu e meus irmãos tínhamos consciência do fracasso quase certo, mas tentávamos mesmo assim. Não podíamos ficar parados — o desenho estava acabando.

Numa tarde, quando novamente me vi às voltas com a petulância d’antena, tive uma experiência singular. O significado do acontecimento, porém, chegou tarde. Foi uma experiência evangélica, uma espécie talvez ainda inominável de epifania. Foi uma declaração. Uma oração que, de tão significativa, ainda ecoa em minha memória. Era Rupert outra vez impedido pela interferência do sinal — analógico. Inicialmente, não reagi senão com as justificáveis respostas fisiológicas: no semblante da criança era possível ver a testa franzida e a tensão da mandíbula. “Que cara de choro é essa, menino?”, perguntava a mãe sempre alarmada, tensa, apavorada. “É essa antena que não presta, mãe!”, eu respondia. “E precisa ficar assim? Fica calmo, menino! P’ra quê ficar nervoso?!”, replicava ela, nervosa.

O estresse é como uma goteira persistente que, pingando sobre a testa de um sujeito cansado, impede-o de dormir. Quanto à localização geográfica da fonte da goteira: deve ser nas circunvizinhanças do inferno. E, ipso facto, a água vem pelando. Não há quem resista. Daí que, como eu não pudesse relaxar, porque o sinal não voltava, tive uma espécie de alucinação, uma porra-louquice, uma experiência não muito distante de uma epifania. Mas do tipo negativo, profundamente negativo. Então, chorando de raiva, eu disse à minha mãe:

“Mãe, eu gostaria que essa antena fosse uma pessoa, dAí eu poderia dar uma surra nela!”.

As crianças são capazes de reflexões profundas, quase de caráter metafísico ou teológico. É evidente que não têm articulação suficiente para verbalizá-las — ou será que têm articulação suficiente para verbalizá-las? Não são reflexões. Não podem ser. De qualquer forma, foi uma experiência negativa; foi produto daquele ódio irracional próprio da infância. O lado positivo, porém, é a força da imaginação da criatura. E aqui está a lição evangélica: se a Verdade, a Bondade e a Beleza fossem uma pessoa, isto é, tomassem forma humana, o que poderia ser feito dela? Aquela antena de TV não era outra coisa senão objeto do meu ódio. E… as palavras não dão conta. Não vale a pena tentar.

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