VITOR MARCOLIN | A Fé vem pelo ouvir

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Epílogo à “falta de vergonha na cara” 

Eu havia afirmado, em minha última coluna, que os católicos não leem a Bíblia e, ipso facto, não têm vergonha na cara. Afirmei e reafirmo agora. Reitero o que eu dissera sem um pingo de arrependimento. O leitor amigo – e quiçá o inimigo — há de compreender que, num texto de quatro parágrafos como aquele, amiúde é difícil ser suficientemente claro sobre um tema polêmico. Mas eu explico. Explicarei o espírito, a substância daquele artigo pretérito e, com isto, espero deixar claríssimo aquilo que primeiro pareceu obscuro.  

Sem-vergonha sou eu. Sob a perspectiva religiosa, nasci num contexto confuso: fui batizado na Igreja Católica Apostólica Romana, mas fui criado como protestante, porque minha família, pouco depois de me abençoar nas águas batismais do sacramento católico, cedeu à eloquência, à oratória, à excitação, à comoção luterana sob a forma de uma de suas muitas vertentes, o neopentecostalismo. Martinho Lutero, vide sua biografia, personificou o espírito de protesto que ele mesmo difundira no coração da Europa – quando havia Europa –, e os ventos de sua tempestade não chegaram aqui como brisa suave. Não. O fato é que, como protestante, passei a infância e a adolescência num ato contínuo de leitura devota da Bíblia. Sola Scriptura. Deus, em sua bondade infinita, escreve certo por sobre linhas tortas; e, como disse uma professora querida, “as linhas tortas somos nós”.  

As releituras ininterruptas fizeram brotar em meu coração um amor entranhado pelas Escrituras. Enquanto protestante, eu não dispunha – e, incutido de preconceito, até desprezava – do Magistério da Igreja. Mas aqui estão as linhas tortas… Não obstante, a narrativa bíblica enriquecia-me por dentro expandindo o meu imaginário. Extraordinárias ou não, as circunstâncias do meu cotidiano passaram a ser, de maneira misteriosa, inspiradas pela narrativa bíblica. Para cada passo, uma citação; para cada gesto, um capítulo; para cada decisão, o alumbramento de um versículo. Era como se João Ferreira de Almeida, protestante português forjado na tradição anticatólica holandesa, fosse também o tradutor do meu necrológio.  

Linhas tortas… Assim, a Bíblia tornou-se para mim o livro mais importante jamais escrito, e eu o lia. Sempre. Regressar à Fé Católica do meu batismo foi como ter escamas caindo dos meus olhos: agora eu dispunha do Magistério da Igreja, dos sábios intérpretes das Sagradas Escrituras. A mudança não foi difícil ou, acrescentando uma pitada de drama à minha narrativa, traumática. Não. Foi maravilhosa simplesmente. Como disse um padre querido assaz conhecido pelos novos irmãos de batalha: a Bíblia não caiu do céu sob a forma de um livro de capa preta com zíper e guarnecido pelo emblema criativo da Sociedade Bíblica do Brasil. Criativo sim, porque, para quem ainda não viu, trata-se de uma Bíblia estilizada na bandeira nacional. Supremo trabalho de marketing da SBB.  

Já está dito: foi a Igreja quem determinou quais seriam os livros a constar no cânon sagrado, a Igreja por meio dos seus sábios, dos seus eruditos, dos seus gênios que, como Sto. Tomás de Aquino – como eu dissera na coluna passada – foi capaz, numa figura de linguagem, de converter o próprio Aristóteles à Fé Católica. Mas o católico não lê a Bíblia. Foi estranho perceber esta triste realidade. Um misto de desânimo e terror apossava-se de mim quando eu, cheio de entusiasmo – e com honestidade – interpelava um amiguinho católico sobre este ou aquele trecho das Escrituras a fim de conhecer-lhe a opinião. Eles não tinham opinião porque não haviam lido. Não sabiam do que cargas d’água eu falava.  

É verdade que a dinâmica da Missa, com a leitura dos Evangelhos seguida das homilias, isto é, das explicações, basta para que cresça a Fé, que vem pelo ouvir e “ouvir a Palavra de Deus”. Os analfabetos salvar-se-ão. Mas notei à minha volta uma ignorância quanto à própria religião que não poderia ser explicada simplesmente pelo desprezo à leitura da Bíblia, porque, aliás, dada a realidade do Magistério da Igreja e da dinâmica da Missa, ela não é indispensável. Percebi à minha volta que o católico — o católico objeto da minha atenção — não ouve também, não presta a devida atenção nas palavras do Padre. Não. Nem as palavras do Padre sobre os Evangelhos nem tampouco os próprios Evangelhos permanecem na memória do sujeito. Há quem dê nomes específicos para o fenômeno, há quem lance mão da nomenclatura discriminada nos manuais de psicologia. Eu prefiro ser mais simples e preciso: é falta de vergonha na cara!  

Tu te lembras da última homilia do Padre de tua paróquia? Se a resposta for negativa, como eu suponho que seja, então tuas objeções à minha crítica já foram anuladas pelo atestado que subscreveste ao término da leitura do texto da semana passada.  

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1 COMENTÁRIO

  1. Alguém dobrou a aposta! Excelente.

    Gostei muito da refutação ao argumento da leitura. Porém, ainda creio haver um vício de origem na abordagem.

    Acho que terias mais êxito fazendo ao contrário. Ao invés de colocar a ênfase nas Escrituras, conversa com os outros fiéis abordando questões práticas: o que se espera do cristão na situação ‘x’? Depois da resposta, tu perguntas sobre a base dessa.

    Depois disso, aí, sim, tu podes ilustrar o problema e a solução com exemplos da Bíblia e ver como o pessoal reage. A Bíblia não é a única fonte para aprender as virtudes cristãs.

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