SANTO CONTO | O palhaço

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Baseado na história de São Filomeno

Deu-se o caso na Roma dos tempos de Diocleciano, lugar e época nada fáceis para os cristãos. O imperador exigia que todos os cidadãos romanos lhe prestassem culto público, e ai de quem tentasse burlar o sistema, ia pra mesma degola que aqueles que corajosamente se recusavam a cultuar o tirano.

Coragem, aliás, era o que faltava ao nobre Volponi, recém-convertido, mas um tanto (ou muito) molenga em suas convicções. Coragem e fé. O homem se angustiava, havia recebido a convocação e a cerimônia pública era dali a dias, e ele ainda não sabia o que fazer. E, sendo ele íntimo de Diocleciano, a coisa ficava ainda pior. Não tinha escapatória: era queimar um incenso ao imperador e apostatar publicamente, ou perder a cabeça – e para aquilo, não estava preparado.

Prazo se esgotando, sendo a cerimônia já no dia seguinte, era fim de tarde e Volponi divagava entre suas angústias na quarta taça de vinho, quando soube que passava por Roma a caravana de Filomeno, o palhaço mais famoso de todo o Império, um imitador sem igual que divertia as multidões. E aí, o demônio que acompanhava o nobre romano desde o dia em que ele se convertera, sussurrou-lhe umas dicas ao pé do ouvido, e seu olhar se iluminou: “Sou um gênio!”. Mandou um empregado chamar Filomeno imediatamente, já lhe levando um bom adiantamento em moedas de ouro (não convinha ser mesquinho numa situação daquelas), e esperou ansioso enquanto entornava mais duas taças. Quando o palhaço chegou, recebeu-o expansivo:

– Ó nobre Filomeno, bom Filomeno, seja bem-vindo e…

Tropeçou e caiu enquanto, babento e pegajoso, ia abraçar Filomeno, sendo ajudado a se levantar por um criado e pelo próprio convidado, visivelmente constrangido, mas animado com a perspectiva de um já certo contrato lucrativo: “Nada melhor que negociar com um bêbado!”. Mas não ficou tão alegre quando, entre mais vinho e gargalhadas, Volponi lhe confirmou a proposta:

– Basicamente, meu caro, é isto: você vai lá, como se fosse eu, queima o incenso pro homem, faz o tal juramento, e pronto! Ganha em questão de minutos o que fatura em um mês! Que me diz? Topa ou não topa? Resposta pra já, sem demora!

Filomeno pesou ali os riscos, mas confiando em seu talento, topou, conseguindo ainda elevar para quase o dobro o preço pelo serviço. Durante a conversa, mesmo com o anfitrião bêbado como estava, pôde estudar sua voz, cacoetes, gestos e trejeitos. Pediu-lhe uma muda de suas melhores roupas e saiu satisfeito, com mais outra parcela do gordo pagamento adiantada. Volponi foi dormir zonzo e feliz, gabando-se de sua esperteza.

Na manhã seguinte lá estava Filomeno, ou melhor, o próprio Volponi encarnado, cópia mais perfeita que o original, na fila do culto. A presença do imperador ali perto o fazia ter calafrios, mas seu profissionalismo e o medo da degola o mantinham admiravelmente no papel. Quando chegou sua vez, no entanto, incenso na mão e braseiro à frente, estacou. Vieram-lhe à mente todas as histórias que já ouvira, sem dar muita atenção, do tal Jesus Cristo e Seus seguidores, os tais Apóstolos, as história de Sua Mãe, e de uns amigos e parentes seus que haviam dado a vida por Ele. Sentiu uma pontada no peito, dolorida, e era como se seu coração houvesse crescido duas vezes de tamanho naquele instante. Falou olhando pro braseiro:

– Não posso.

Olhou em torno e repetiu, com mais ênfase:

– Não posso!

Desfez-se da túnica de Volponi e continuou a gritar a todos em volta, “Não posso! Não posso! Não posso!”, até que um menino entre o público gritou, apontando:

– Olha, é Filomeno, o palhaço!

Gargalhadas gerais, inclusive por parte de Diocleciano, que estava se divertindo com o número, até que Filomeno começou a derrubar as imagens sagradas – uma sua, inclusive – e a berrar “Viva Jesus Cristo!”. Aí, mandou que seus guardas o prendessem, e, como o palhaço continuasse a bradar a mesma coisa, descontrolado, o imperador ordenou ali mesmo sua execução.

A cabeça de Filomeno rolou bem no meio de um último “Jesus” que ele gritava, e enquanto a multidão em torno era dispersada pelos guardas imperiais e Diocleciano jurava vingança contra Volponi, o palhaço subia rapidinho para o Céu, levado por Anjos, e o menino que o reconhecera voltava para casa, puxado pela mãe, com aquela frase gravada em seu coração: “Viva Jesus Cristo!”.


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