BRUNA TORLAY丨Manejando a massa

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Sobre o paradoxo dos patriotas aquartelados

Sob o horizonte pragmático da política, a técnica principal é o manejo do consenso. Persuadir, com todos os meios à disposição, grupos sem parte num objetivo especial, a agir de modo que colaborem – sabendo ou não – com o mesmo objetivo. Mudam os cenários e a constituição dos grupos a se manejar, mas não a técnica.

Falemos do ciclo moderno da história. Na era das cortes absolutistas, o objeto da persuasão eram as forças aristocráticas e eclesiásticas envolvidas na disputa pelo poder. O amparo dos senhores era o povo, visto como instrumento de manutenção dos meios de poder.

As revoluções liberais trocaram cortes por parlamentos, cujos membros, agora se alternando na função de direção política, se dividem em partidos. Herdam o vínculo com o povo, de quem se tornam “representantes”. A habilidade de cada povo em capturar a finalidade envolvida no manejo do consenso de seus representantes se torna sua única fonte de prudência. Mas sabendo os representantes manejar, sob a aparência da filantropia, o consenso dos representados, fazem-no em seu interesse, ou interesse do partido.

Tiranias socialistas à parte, nas quais o povo é claramente instrumento de confecção forçada de uma engrenagem imaginária, sendo utilizado nos experimentos à revelia de sua vontade e sem meios legais de resistência ao manejo dos mandantes, o papel do povo nas democracias representativas depende de sua paridade, ou superioridade intelectual com relação a seus representantes.

Quanto maior uma população, e maior o número dos “engajados”, mais militantes tem-se à disposição. Grupos adversários disputam o quinhão do poder amparados pela impressão de grandeza e significância que produz a mobilização popular ao seu lado. O “medo do povo na rua” que tanto assusta políticos se deve à utilidade que toda pressão externa possui para um grupo adversário. Nenhum político tem medo do povo na rua quando essa mobilização lhe tem alguma utilidade. O temor real nasce da paridade ou superioridade intelectual do povo, que, nesse caso, usaria de sua força para induzir o representante a agir conforme seu propósito — ou manejá-lo.

Maneje ou será manejado; eis a síntese das relações políticas sob o horizonte do aclamado pragmatismo. A moralidade passa longe e a inteligência se torna arma defensiva contra abusos sistemáticos; única forma de antever a vantagem que um ato seu dá ao adversário; ou mesmo a um aliado trabalhando, em segredo, por uma finalidade diferente daquela que combinou com você.

Eis o drama dos esperançosos patriotas aquartelados. Eles estão ali por uma razão particular. Mas o seu estar ali é utilizado de formas distintas pelos adversários políticos em combate. Uns usam sua presença para acrescer vantagens às suas negociações com o grupo que vai governar. Para esses, é preciso incensar os sentimentos da multidão de modo a mantê-las ali – pelo menos até que um bom acordo seja fechado.

Outros a usam para desdourar a reputação do adversário, incensando os sentimentos de pessoas que se incomodam com as alterações no tráfego ocasionadas pela movimentação. Há ainda quem a maneje em interesse próprio: para ter assunto, angariando moedas entretendo as esperanças alheias – como fazem os equilibristas com a plateia em busca de emoção no circo. Sabe os youtubers do tic-tac?

No momento em que um acordo for fechado, já não será necessário mantê-los ali. E começa a desmobilização. Agora, a massa será manobrada a detestar, por alguma razão, o estar ali, movendo-se em outra direção. E la nave va

O papel do povo nas democracias representativas depende de sua paridade, ou superioridade intelectual com relação a seus representantes. Quando ela é inferior, será necessariamente massa de manobra. “Mas alto lá! Abrir livros e exercitar a reflexão é bobagem. Selva!”, disse um manejador esperto, ou um manejado incauto.

Para que fazer uso da razão que Deus nos deu, quando é possível abrir mão dela para nos reduzir a instrumento da mais aguda racionalidade do próximo?

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