SANTO CONTO | O paciente

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Baseado em um episódio da vida de São João de Deus

Irmão João vinha andando pelas ruas de Granada sem perceber os olhares que recaíam sobre ele, os dedos apontados e os cochichos de toda parte. Voltava da Missa e, transido pela comunhão com Nosso Senhor, estava ainda orando. Umas senhoras que o viam passar comentavam entre si:

– Olhem, lá vai o mendigo doido do hospital!

– O que cuida dos outros mendigos?

– Ele mesmo!

– Ouvi dizer que ele abraça os leprosos!

– Sim, abraça! Também já ouvi dizer!

– Ah, deve ser por isso que fede tanto! Está todos os dias logo na primeira Missa na Capela Real. Certo domingo sentou-se perto de mim, e não houve o que fazer, a casa estava lotada. Deus, como fede!

Entre as risadas, uma das donas apontou-o:

– Já vai longe, olhem. Sempre correndo por aí, sempre às voltas com seus doentes, todos doidos como ele. Mas não sabeis da última, sabeis? Ouvi dizer que lá, entre os pacientes dele, há um maometano!  

– Um maometano??? – atalharam as demais, aturdidas, fazendo o Sinal da Cruz.

– Isso é crime!

– É sacrilégio!

– Impiedade!

– Loucura além de qualquer loucura!

E continuaram boquejando as senhoras, enquanto maldiziam o “mendigo doido” e tantas outras pessoas de sua lista de desafetos.

Enquanto isso, Irmão João, já bem longe de suas vistas e línguas, chegava a seu hospital improvisado. Ia despertando os pacientes da primeira ala, muitos acordando com resmungos e imprecações. Enquanto o mendigo-enfermeiro, com a ajuda de um menino que recolhera das ruas, ia preparando os medicamentos e refeições de cada um, dando bons dias a todos, Alonso, um pobre velho perturbado que se julgava um cavaleiro de outros tempos, olhou nos olhos os colegas em torno, e disparou:

– Frei João, meu bom frade, bom homem de Deus, sê bem-vindo a nosso hospital de campanha. A paz seja contigo! Estivemos em conselho, eu meus nobres colegas, e um assunto da maior gravidade tem-nos alarmado e requer tua atenção urgente!

– O que foi, D. Alonso? – Irmão João ia pacientemente passando sobre a testa e o pescoço do paciente febril um pano embebido em água, para aliviá-lo do calor do verão granadense – O que os aflige, afinal?

– Ouvimos boatos – o velho mendigo procurava afetar solenidade – de que há entre nós, absconso nos fundos desta Santa Casa, um inimigo do Senhor, um inimigo da Santa Fé, um filho de Maomé!

– Nada disso, irmãozinho, nada disso. Aqui só há filhos de Deus. Agora, come teu pão, e dá graças.

– Dou graças ao Senhor e a ti, meu bom frei, mas escuta: estivesse eu na plenitude de minhas forças, sairia agora mesmo à caça deste infiel, e o passaria ao fio de minha espada!

– Irmão João – atalhou Gonçalo, o paciente ao lado – não dês importância a este velho maluco. Mas diz-nos a verdade: há entre nós um maometano?

– Há pobres de Deus, meu bom Gonçalo – Irmão João ia limpando o sangue tossido no colo do pobre mendigo –, há apenas pobres de Deus.  

– Mas, Irmão João…

– Come e dá graças!

– Irmão João – atalhou Sancho, um homem com enormes pernas inchadas e tortas –, diz-nos a verdade! Trouxeste para cá um sujeito todo esfolado, uns dias atrás, e o puseste lá nos fundos, para além da ala dos leprosos. Por quê? Nós o ouvimos orando ontem, e ele não invoca o nome de Deus, de Nosso Senhor Jesus Cristo ou da Virgem Santíssima, senão o de “Alá Misericordioso”. É ele mesmo um maometano? Ou algum louco perigoso? Fala-nos!

– Descansa, querido Sancho – Irmão João falava enquanto terminava de tratar-lhe as escaras nas costas –, é só um doente que precisa de cuidados, como todos vós. Agora, come e dá graças!

E, entre tantos outros doentes, as dúvidas, as apreensões, eram as mesmas, e eram-lhe feitas as mesmas perguntas, enquanto Irmão João ia pacientemente cuidado de cada um. O mesmo se deu na ala dos leprosos, onde o mendigo demorou-se o dobro do tempo nos cuidados de tantas feridas podres. Ao final, lá nos fundos do hospital, sozinho, jazia seu último paciente, todo cheio de faixas e curativos, rezando em voz baixa.

– A paz seja contigo, irmãozinho!

– Alá Misericordioso seja-lhe propício, Irmão João!

– Como te sentes hoje?

– Preparado para morrer.

– Então, que teu coração esteja aberto a que morras na graça de Nosso Senhor, irmãozinho!

Foi então tratando dos muitos ferimentos do paciente, enquanto este se deixava jazer, muito fraco, a respiração lhe faltando. Quando Irmão João já estava terminando, falou com dificuldade:

– Bom homem…

– Sim, irmão?

– Queria, antes de partir, perguntar-te: por que, afinal, me recolheste das ruas? O que, afinal, me devias?

– Ora, irmão – o mendigo o ajudava a tomar água –, estavas ao relento, na chuva, e todo arrebentado. Irias morrer ali mesmo, como um cão abandonado. E não és um cão, és um homem.

– Irmão… – o paciente falava com dificuldade – Eu te digo uma coisa… Se todos os cristãos fossem como tu, não haveria mais um só maometano no mundo.

E, fechando os olhos, suspirou e dormiu. Dali a minutos, morria, com Irmão João a segurar-lhe a mão entre as suas, e a rezar por ele.


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