SANTO CONTO | A enchente

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Livremente baseado em um milagre de São Gregório Taumaturgo

Pois é, rapaz, minha cidade natal antigamente chamava só Nova Cesareia, foi depois daquela chuvarada que virou Nova Cesareia dos Milagres. Tudo por causa do Padre Gregório, que Deus o tenha. Nunca ouviu falar? Então, se abanca aí que eu vou te contar…

Na época eu era moleque, da idade desses que você tá vendo aí no campinho, e dava trabalhão pra minha mãe, que Deus a tenha. Aprontava o tempo todo, quase matava a coitada de susto toda vez que aparecia arrebentado em casa. Era a cabeça rachada, a perna queimada, os dois braços e as duas pernas quebradas quando pulei do telhado, o dedo que eu quase perdi… Tá vendo aqui, ó, esse dedo torto? Pois é, quase cortei fora numa disputa com facão, brincando de pirata, a ponta ficou pendurada pela pele, tiveram que colocar de volta no lugar e remendar, ficou essa coisa torta aí! Que Deus me perdoe eu falar isso, mas eu era o diabo, rapaz! Caçador de aventura, como dizia na época, e se tinha perigo, era lá que eu me metia.

Falando em perigo, brincadeira preferida de moleque de cidade de rio sempre foi nadar, né? E eu vivia lá pras bandas do rio, mesmo a mãe proibindo quase sempre, por causa dos perigos. Lembro que uma vez eu matei aula pra ir no rio com os moleques, alguém dedou, e quando eu cheguei em casa ela estava sentada me esperando, a Bíblia aberta em cima da mesa, e do lado uma vara do pé de carambola. Ela pediu bem calma para eu ler o trecho que tinha sublinhado, Provérbios 23, 13 – 14, nunca mais esqueci: “Não poupes ao menino a correção: se tu o castigares com a vara, ele não morrerá; castigando-o com a vara, salvará sua vida da morada dos mortos.”  E aí, veio o gostinho do inferno com a surra de vara no lombo. Já apanhou de vara de carambola, rapaz? Corrigir ali na hora não corrigiu, porque eu voltei pro rio uns dias depois, mas que foi um belo “presta atenção”, ah, se foi…

E foi justamente por aqueles dias em que eu estive no rio sem a mãe saber de novo que aconteceu tudo. O verão vinha chegando, a época das grandes chuvaradas já tinha começado, a molecada se assanhava naquele riozão barrento, vermelho, cheio e brabo… Os perigos a gente conhecia, mas quem disse que criança atentada se preocupa com perigo? Pois é! Mas naquele dia foi diferente, a chuva chegou de repente e com tudo, e quando o rio quase levou um, que se salvou só pela graça de Deus, saiu todo mundo da água, mas continuamos ali, olhado aquele mundo de água toda crescendo até transbordar, e aí correu todo mundo pra casa.

Cheguei em casa já preparado pra surra de vara, mas foi nada disso, a mãe veio correndo me abraçar, me puxou pelo braço e me levou pra dentro, mandou tomar banho. Quando entrei no banheiro, escutei ela falando com o pai a palavra “enchente”, coisa que não acontecia em Nova Cesareia já tinha muito tempo, desde antes de eu nascer. Mas meus pais sempre contavam de uma terrível que tinha acontecido quando eles eram mocinhos e nem se conheciam ainda, alagou mais da metade da cidade, inclusiva a casa da Vó Maria, Vô Bento sempre falava que teve que recomeçar tudo do zero depois daquela chuva do cão, como ele chamava. E agora eu via meus pais, que fazia tempo que tinham dormido na fé, ali ajoelhados em frente à imagem de Nossa Senhora, desfiando o Rosário com fúria, parecia até que estavam descontando o tempo de ausência na reza…

Mas eu tinha te falado do Padre Gregório, não é? Foi ele quem salvou a cidade, quer dizer, quem salvou foi Deus, né, mas usou o padre pra isso! E vou te dizer, Padre Gregório tinha chegado ali fazia pouco tempo, não era lá muito querido entre a gente de Nova Cesareia, só os velhos gostavam dele. O povo em geral gostava mais dos padres “moderninhos”, como chamava a Vó Joana, os tais moderninhos com ideia de comunista, como ela dizia. E Padre Gregório, transferido pra lá ainda nos cueiros, como se dizia, um rapagão de batina com um discurso que não agradava o pessoal e irritava o Bispo, que nem por lá morava, mas vivia aparecendo pra dar bronca no Padre…

E foi o Padre quem eu vi pela janela, encharcado, passando em frente de casa com uns moleques atrás, indo na direção do rio, levando na mão seu famoso cajado. Não te contei, né? Padre Gregório andava pra todo lado com um cajado na mão, ninguém sabia pra quê, era motivo de piada em todo lugar. Quando vi que iam pro rio, não me contive, fui atrás também, o pai e a mãe, concentrados na reza, nem me viram saindo de mansinho…

Quando chegamos lá a coisa tava feia, o rio já tinha transbordado e a água ia avançando, com certeza ia tragar boa parte de Nova Cesareia, onde, depois fiquei sabendo, o povo quase todo estava que nem meus pais, rezando ajoelhado pedido por um milagre. E o milagre veio. Padre Gregório, quando chegou perto da água, foi avançado de braços abertos, rezando em latim, e a cheia ia voltado pra trás, como se o rio tivesse medo dele, a água acumulada ia voltando e crescendo pra cima, e ia se formando um paredão de água, a gente olhava aquilo de olho arregalado! Aí, quando chegou já onde era a margem, o paredão estancou, Padre Gregório fincou o cajado no chão e continuou rezando com os braços abertos. Então o cajado foi crescendo pra cima, pra baixo e pros lados, criando galhos, copa e raiz, e de repente era uma árvore gigante, dessas que nem vinte homens juntos conseguem abraçar!  E a raiz começou a crescer pra fora da terra e se espalhar pros lados. Era uma raiz grossa, mais grossa que muito tronco de árvore, foi se espalhando até a gente perder de vista, e engrossando mais ainda, até que formar uma muralha. E aí o padre parou de rezar e a outra muralha, a de água, desabou e foi contida por aquele entrelaçado gigante de raiz. E é claro que eu e os moleques escalamos aquele paredão de raiz pra olhar lá do outro lado, tinha se formado um dique, e a água do rio ia sendo jogada pra mata…Quando olhamos pra trás, quase toda a cidade estava lá também, não vimos quando foram chegando, mas era um mundaréu de gente rezando de joelhos, olhando espantada pro Padre Gregório e a muralha de raiz…

Ainda choveu por uns três dias, e o povo, mais tranquilo, continuou rezando. Padre Gregório passou a ser respeitado, inclusive pelo Bispo, as Missas começaram a encher, o povo voltou à devoção dos tempos dos avós, e a cidade prosperou, mas continuou escondida do mundo, como se estivesse sendo protegida por Deus, desconhecida apesar dos milagres que passaram a acontecer depois desse da muralha, que está lá em Nova Cesareia dos Milagres até hoje, com uma estátua do Padre Gregório junto da árvore…


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