SANTO CONTO | À direita

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Inspirado na história de São Dimas, o bom ladrão

Já era o terceiro dia em que os malfeitores Gestas e Dimas suportavam o tormento da cruz. O primeiro, boquejando muito e sempre, maldizendo a própria sorte, seus algozes e Deus, queixando-se das dores e blasfemando, e a intervalos cada vez mais curtos, não obstante o quase sufocamento que a crucifixão causava. O outro, quase sempre calado, rememorava sua vida toda até o presente suplício, várias e várias vezes, tentando entender como e por que se enveredara por caminhos tão sombrios, sinceramente arrependido de seus erros.

É claro, as feridas do látego nas costas, grudando e desgrudando do madeiro, os insetos pousando sobre aquelas chagas abertas, as dores musculares em todo o corpo, cada vez mais intensas, os pulmões que iam se enchendo de líquido e a cada vez mais insuportável falta de ar o atrapalhavam (isso sem falar nas reclamações ininterruptas de seu companheiro à esquerda), e ele precisava começar de novo, e de novo, a cada vez que as memórias se atrapalhavam. Mas a cada recomeço sua concentração parecia melhorar, e os detalhes no filme que se projetava em sua mente iam ficando mais nítidos, com novas cenas esquecidas, fatos para os quais ele havia dado pouca importância no decorrer da vida e que agora pareciam recobrir-se de nova luz.

Uma dessas lembranças remetia à sua primeira infância, e era a que mais se imprimia em seu pensamento. Acontecera quando ele ainda nem engatinhava, em uma estrada incerta em sua memória. Sua família viajava para algum lugar distante, no Oriente, e cruzara com outra que tomava caminho parecido. Havia na outra família um menino mais ou menos da mesma idade que a sua, pouca coisa mais novo, e enquanto as duas mães conversavam, ele e o outro pequeno haviam travado contato. O outro bebê o havia tocado de leve com sua pequenina mão, e aquilo causou-lhe uma alegria indescritível. Em sua linguagem de bebê, ele começou a gargalhar, e o outro o acompanhou, causando enorme deleite nas duas mães e em outros passantes aquelas gargalhadas gostosas dos bebezinhos. E então cada família seguiu seu caminho, e o pequeno Dimas rumaria para as trilhas perversas que o fariam chegar até ali, naquela cruz.

A lembrança daquele seu primeiro amigo ficaria amortecida, quase esquecida, até aquele momento, quando voltava cada vez mais viva. Dimas ia lembrando, inclusive, de cada detalhe do rosto daquele bebê, e sobretudo de seu sorriso, que o fazia também sorrir apesar das dores excruciantes. Por que lembrava-se tanto daquele fato, e em especial daquele sorriso? Não sabia, mas gostava, porque era o único alívio de que dispunha, e se apegava a ele.

Estava em um daqueles momentos em que as lembranças se atrapalhavam, e já tentando reordenar seus pensamentos, quando foi interrompido por alaridos que vinham da estrada. Um novo condenado vinha carregando seu madeiro e, fato estranho, acompanhado de uma multidão que vinha com choros e lamentos. Quando o prisioneiro se aproximou, Dimas espantou-se com seu estado: ele usava um manto vermelho, vinha com feriadas cruentas por todo o corpo, completamente ensanguentado, o rosto desfigurado, e com uma coroa de espinhos cravada em sua cabeça. Ficou pensando que mal teria feito aquele homem para tamanho rigor em sua punição, enquanto observava os que o acompanhavam mais de perto. Um jovem muito triste, e algumas mulheres, uma das quais parecia ser sua mãe, desfeita em prantos. Teve pena da mulher, sentiu seu coração pequeno, oprimido, ao vê-la naquele estado, e também por lembrar das tristezas que dera para sua própria mãe, morta havia pouco, desgostosa pelo filho tão degenerado e perdido. Também se apiedou do condenado, que agora tinha suas mãos e seus pés perfurados por enormes pregos. Até mesmo o tagarela Gestas emudecera enquanto observava aquela crucifixão especialmente violenta. E foi enquanto erguiam a cruz do novo companheiro que, a um grito de angústia daquela mulher que sofria tanto, clamando o nome do filho, que os dois malfeitores descobriam enfim que era o desfigurado: Jesus.

Ambos já haviam escutado as muitas histórias que se contavam sobre um tal pregador nazareno que fazia muitos milagres, e que, diziam, era o enviado de Deus e Seu próprio Filho encarnado, mas nunca o tinham visto. Gestas não dava importância às histórias, para ele devia ser mais um de tantos magos charlatães que já conhecera, alguns aos quais já se associara mais de uma vez. Mas Dimas escutava todas as histórias com espanto e reverência, e em seu coração sentia mesmo uma grande vontade de um dia conhecer o tal nazareno. Pois bem, agora Ele estava ali ao seu lado, bem no meio entre ele e Gestas, que voltara a reclamar, xingar e blasfemar, urrando de dor a cada xingamento ou blasfêmia. Dimas, por sua vez, guardava o mais profundo silêncio, esgotado de dor e cansaço, olhando com o rabo do olho aquele homem que, ele sabia, era santo e não merecia estar ali. Mas foi então que, quando o encarniçado malfeitor da esquerda, já exausto, sentiu que suas forças chegavam ao fim, resolveu escarnecer de Jesus, perguntando-lhe em tom de troça e cheio de ódio, por que afinal, sendo Ele o Messias, não salvava si próprio, o silencioso Dimas perdeu a paciência e bradou:

– Cala-te, homem! Cala-te já e de uma vez por todas! Não temes a Deus nunca, nem na hora de teu maior suplício? Nós recebemos o que merecíamos, porque somos maus e covardes, perversos, mas este ao nosso lado nada fez de mal! Cala-te!

E, voltando-se para Jesus, disse:

– Senhor, lembra-te de mim quando entrares no Teu Reino!

E Jesus respondeu-lhe:

Em verdade te digo: hoje mesmo estarás comigo no Paraíso.

E assim se deu. Tempos depois, quando já nenhum dos três respirava neste mundo, Dimas via-se no Céu, sem feridas ou dores, sem falta de ar ou qualquer sofrimento, sentindo uma alegria imensa, infinita, e reconhecendo, enfim, no rosto adulto e não mais desfigurado de Jesus, que vinha abraçá-lo, aquele mesmo sorriso que tantas vezes rememorara antes do fim, o sorriso do seu primeiro amigo de infância.


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