RESENHA | Enterrem as Correntes

O retrato da luta contra a Escravidão

Por Meri Angélica Harakawa.

Enterrem as Correntes nos traz a história dos 50 anos de trajetória do abolicionismo inglês. O livro (esgotado, mas encontrável em sebos) recebeu os melhores elogios, e o autor Adam Hochschild é professor de redação na Faculdade de Jornalismo da Universidade da Califórnia. Ele narra com escrita envolvente e cheia de detalhes o percurso histórico, as personalidades e acontecimentos que levaram o Império Britânico a abolir a escravidão, arrastando as demais nações europeias, numa época em que a Inglaterra promovia o maior volume de tráfico e era a que mais lucrava com o trabalho escravo.

Enterrem as Correntes é em grande medida o retrato dos homens que fizeram a abolição, de como o fizeram, e da sociedade onde muitos os seguiram e outros se lhes opuseram. Aqui não veremos teses marxistas. O livro fala da economia colonial toda baseada no trabalho escravo, mas o autor crê que a abolição não foi feita em razão de interesses econômicos, mas apesar deles. Pois há outras motivações para as ações humanas, que partem dos indivíduos e que se sobrepõem às forças impessoais que a historiografia materialista enfatiza.

Os homens que desencadearam o movimento em solo inglês eram todos cristãos, anglicanos e quakers, de status mediano na sociedade. Eles estiveram juntos durante quase todos os 50 anos do movimento, sempre com o objetivo de alcançar o fim da escravidão, a partir da reunião inicial de doze homens numa tipografia e editora, onde se deu o início oficial do movimento em 1787.

Tudo se passou entre o final do século 18 e a primeira metade do século 19. Foi uma era de revoluções (americana, francesa), da busca da liberdade da própria terra, da própria gente. Mas não da liberdade alheia. Não se pode deixar de destacar — e o autor o enfatiza — que a luta abolicionista foi uma luta pelo bem do outro, de pessoas que sequer eram vistas pois estavam em outro continente, nas colônias do Caribe (chamadas Índias Ocidentais), na costa africana, nas águas do Atlântico, onde se dava o drama da escravidão.

A escravidão era a base da economia (açúcar, café, algodão) e era inconcebível para a mentalidade da época uma sociedade sem trabalho escravo. Informa o autor que a escravidão é uma instituição mais antiga do que o dinheiro e a lei escrita, sendo que no final do século 18 mais de três quartos da humanidade vivia escravizada ou em situação comparável à escravidão. Aristóteles considerava-a um fato natural; Thomas More e Adam Smith, como inevitável. Mesmo naquela era iluminista poucos pregavam contra a escravidão.

Nossos abolicionistas não eram iluministas tout court, mas faziam amplo uso da liberdade de expressão. Nove deles eram quakers, uma seita cristã igualitarista e pacifista, alvo constante de perseguições. Quakers tinham imigrado para os Estados Unidos, e a um certo momento não somente libertaram os escravos que possuíam como lhes pagaram indenizações. O fato de terem sofrido perseguições incutia neles o espírito abolicionista. Outros três eram anglicanos – era importante contar com membros da igreja anglicana, parte importante do establishment – entre eles os notáveis Granville Sharp, precursor e presidente de honra do comitê, e Thomas Clarkson, o maior propagador do movimento que Hochschild considera personagem principal do livro.

Nos primeiros capítulos do livro o autor traça um retrato panorâmico da escravidão nas colônias e do tráfico negreiro, tudo isso também através da mentalidade e sensibilidade de personagens vivendo nesse ambiente. A quarta parte do livro, quando a onda libertária chega às colônias, vai descrever as tremendas insurreições de negros na Jamaica, em Barbados e São Domingos, e como se deu a proclamação da república do Haiti, segunda nação a se tornar independente depois dos Estados Unidos. São capítulos eletrizantes que preenchem nossa imaginação, sem o que não teríamos o impacto emocional dessa época, dos seus conflitos, do horror da escravidão, da complexidade das situações e dos anseios daquelas pessoas. São viagens, paisagens, intempéries, ânsias, dramas, livramentos, chagas e flagelos que somente a boa literatura pode retratar.

Mas sobre a luta dos abolicionistas é possível traçar em algumas linhas o que houve de tão admirável e pouco conhecido nesse movimento.

Os ingleses em geral tinham pouco contato com a escravidão, pois os negros que eles costumavam ver na Inglaterra eram livres, trabalhadores em serviços domésticos e de baixos salários; entre estes havia ex-escravos das colônias norte-americanas emancipados pela Coroa britânica por terem ficado do lado inglês na guerra de independência. Mas houve na vida dos abolicionistas um momento de tomada de consciência: Granville Sharp no encontro com um escravo foragido, chagado e moribundo; Thomas Clarkson, na pesquisa para o prêmio literário sobre a escravidão que o consagrou na academia. Em outras personalidades a rejeição à escravidão foi lenta e tardia, como no Capitão John Newton (autor do hino Amazing Grace), ou mitigada por preconceitos religiosos como em Wilberforce — ainda assim campeão dos abolicionistas no Parlamento inglês.

Sharp era um homem de múltiplos talentos, músico, polemista, exegeta bíblico, empreendedor, apoiado por irmãos de espírito igualmente filantrópico que o sustentaram para que ele se dedicasse integralmente à causa. Obteve as primeiras vitórias judiciais na defesa de negros contra seus proprietários na Inglaterra, e notadamente contra os donos do navio Zong, que simplesmente atiraram escravos em alto mar para morrer, com o intuito de obter uma indenização do seguro por “carga perdida”. Foi também o idealizador e pioneiro de um empreendimento libertário e em grande medida utópico, a colônia de negros resgatados que hoje é o país africano de Serra Leoa.

O jovem estudante Thomas Clarkson, após a obtenção do prêmio literário, tornou-se o maior ativista da abolição da escravatura, em uma atuação de mais de quatro décadas percorrendo cerca de 56 mil quilômetros a cavalo, buscando testemunhas sobre a escravidão nos portos ingleses, coletando milhares de assinaturas em centenas de petições e formando núcleos abolicionistas em toda a Grã-Bretanha.

Para conter a portentosa saga abolicionista nos limites de um artigo, vou apenas citar mais alguns fatos e personagens do livro que não se pode deixar de mencionar.

O africano Olauddah Equiano teve uma vida excepcional, e embora não fosse um dos doze abolicionistas brancos, afirmou a sua dignidade e valor saindo da condição de escravo até se tornar escritor de sucesso das próprias peripécias (chegou a estar em expedição no Polo Norte), perfeitamente integrado na sociedade inglesa através do mérito e do casamento. Até hoje o livro de Equiano (A Interessante Narrativa da Vida de Olaudah Equiano, Editora 34) continua ganhando leitores e se encontra na maior parte das livrarias.

As mulheres, que não votavam, foram muito sensíveis à causa a ponto de realizarem grandes boicotes contra o consumo de açúcar. A mais notável delas foi Elizabeth Heyrick, uma viúva culta que escrevia e publicava panfletos pregando a abolição imediata, desafiando o gradualismo dos mais moderados – ou realistas.

O fato é que a abolição teve várias etapas, sendo a primeira a abolição do tráfico em 1807. Havia muitos problemas no caminho, questões políticas, de propriedade, de relações internacionais, guerras, e foram décadas de embates no Parlamento até se obter a libertação dos escravos em todas as colônias inglesas, em 1838.

É interessantíssimo saber que os instrumentos que hoje conhecemos e utilizamos no ativismo e na resistência pacífica foram os instrumentos usados: panfletos, boicotes, petições, debates, protestos, lobby, artigos de jornais. Havia na Inglaterra outras condições predisponentes: um parlamento mais forte que o Rei, livre expressão, boas estradas, cafeterias, livrarias. Os abolicionistas tinham encontros frequentes e procuravam morar próximos uns dos outros. Outro fato: homens ingleses enfrentavam o recrutamento forçado pela Marinha, rapto puro e simples, que consequentemente levava muitos a terem empatia pelos escravos.

Na conclusão do livro Hochschild ressalta que a abolição não significou o fim da injustiça, mas que sem a vitória inicial contra a escravidão outras lutas não seriam possíveis. É uma medida do progresso humano que, hoje, escravizar pessoas seja considerado crime contra a humanidade. Um dos juízes que julgou o ex-ditador da Iugoslávia, Slobodan Milosevic, por crimes de guerra foi um descendente de escravos, o jamaicano Patrick Robinson. O capítulo segue descrevendo marcos remanescentes da escravidão no Atlântico, um cenário que evoca a violência, os contrastes e a pobreza persistente, mas onde ao final de tudo existe educação quase universalizada, serviços públicos de saúde e progresso para os descendentes daqueles que sofreram e lutaram contra a escravidão. Hochschild comenta que há poucos marcos comemorativos da abolição em Londres, mas para ele o mais significativo é que organizações de direitos humanos que atualmente lutam contra outras formas de violência e servidão “descendem” do Comitê abolicionista da rua George Yard, 2.

Para o autor, o desafio enfrentado pelos abolicionistas era tão tremendo quanto é hoje o desafio de enfrentar a enorme lacuna entre nações ricas e pobres, as guerras e as armas nucleares etc. Acrescenta que sem a indignação e a crença em uma solução, nenhuma mudança é possível. E encerra afirmando que aqueles homens profundamente religiosos acreditaram sobretudo na capacidade humana de empatia, no não conformismo, e em ser possível mobilizar as pessoas simplesmente mostrando-lhes a realidade. As jornadas de milhares de quilômetros ao longo de décadas realizadas por Clarkson, o realismo dos grilhões e torniquetes que ele carregava para todo lugar, os inúmeros depoimentos que ele colheu daqueles que testemunharam a crueldade e horror da escravidão exerceram um papel fundamental nessa grande transformação social.

Capa do livro. Imagem/Reprodução

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