PAULO SANCHOTENE | Futebol, Racismo, e a Nobre Verdade do Vinícius Jr

Paulo Sanchotene
Paulo Sanchotene
Paulo Roberto Tellechea Sanchotene é mestre em Direito pela UFRGS e possui um M.A. em Política pela Catholic University of America. Escreveu e apresentou trabalhos no Brasil e no exterior, sobre os pensamentos de Eric Voegelin, Russell Kirk, e Platão, sobre a história política americana, e sobre direito internacional. É casado e pai de dois filhos. Atualmente, mora no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira entre a civilização e a Argentina, onde administra a estância da família (Santo Antônio da Askatasuna).

Pergunta: “¿É possível se solidarizar com o Vinícius Júnior sem cair no Politicamente Correto?

I. A POLÊMICA

Ontem, a Bruna Torlay desafiou as pessoas nos estóris do Instagram a lhe mandaram apenas perguntas difíceis. Eu mandei a questão da epígrafe.

Para quem não sabe, Vinícius Júnior é jogador de futebol, da Seleção Brasileira e do Real Madri, e vem sofrendo com ofensas raciais em jogos do campeonato espanhol. Na última rodada, ele perdeu a cabeça e foi expulso.

Esse imbróglio já vem de algum tempo, mas a polêmica atingiu o ápice a partir do final-de-semana. Já houve bate-boca nas redes sociais com a Liga espanhola, afastamento dos árbitros, punição ao Valência (adversário do Madri), cancelamento do cartão dado ao Vinícius, etc.

Como se vê, é um tema quente e polêmico. Eu queria escrever sobre isso, mas estava reticente. As chances de eu ser mal compreendido são de 100%. A resposta da Bruna foi o empurrão que faltava para eliminar meu receio. A ideia era publicar o texto ontem, mas não consegui tempo para pô-lo no papel. Até foi bom, pois um dos ganchos que eu tinha já ganhou contorno novo.

II. A DOR DÓI

Primeiro ponto é reconhecer a dor do Vinícius. Antes de se discutir se a dor é justificada, se a reação do jogador é apropriada, e quais seriam as melhores medidas a serem tomadas diante da situação, é necessário aceitar que lhe dói. Por exemplo, para o dentista arrancar um dente, ele não precisa anestesiar o paciente. Faz-se para minimizar o sofrimento desse.

Da mesma forma, até se poderia tratar desse assunto ignorando a dor do atleta (e de outros que sofrem em situações parecidas), mas é melhor fazer levando isso em consideração. O dentista, no entanto, precisa tirar o dente ainda – mesmo que não consiga eliminar todo o sofrimento do paciente; mesmo que a remoção não resolva de pronto o problema.

Em suma, tratar da questão também causa incômodo; mas não tem outro jeito. Que pelo menos façamos isso considerando a dor alheia.

III. GENTE DE BEM

Segundo ponto, é muito fácil se solidarizar com o Vinícius Júnior. Há uma forte tendência para se gostar dele. Eu gosto bastante!

Não o conheço pessoalmente, mas a persona pública dele é extremamente carismática. Não somente ele é sorridente, simpático, e divertido, como também leva essas características para dentro do campo. O jogador Vinícius é assim.

Quando ele é agredido, portanto, está-se agredindo alguém a quem é natural não se ver razão para tal. A sensação é de injustiça, a qual se soma o evidente sofrimento dele e mais. Afinal, ele é jogador do principal clube e da principal seleção do esporte mais popular do mundo. Não surpreende, pois, a proporção que o caso tomou.

Até aqui, eu consigo ir sem causar muita polêmica. A partir de agora é que complica.

IV. POR QUE COM O VINÍCIUS

Eu nunca ouço a rádio Atlântida FM. Porém, na segunda-feira, estava dirigindo em viagem, e a minha esposa deixou ali porque estavam a falar de futebol (e o Grêmio tinha ganho o clássico no domingo). No programa, o jornalista Luciano Potter foi absolutamente irretocável num comentário que ele fez.

A fala dele é indigesta, mas estava corretíssima. Ontem, diante das reações, ele se retratou. Não deveria. A verdade pode ser indigesta. Podemos entender que a realidade deveria ser diferente. Contudo, a verdade e a realidade continuam sendo o que são independentemente da nossa opinião sobre essas.

O que ele disse? Potter afirmou que, ainda que haja racistas aproveitando-se da situação para escancarar seu sentimento, o fato principal é que o Vinícius Jr. claramente se desestabiliza com essas agressões. Sendo ele o melhor jogador do time adversário, os xingamentos servem para prejudicá-lo e, com isso, ajudar o time local.

V. O PAPEL DO TORCEDOR

Potter foi criticado por “passar pano” em racismo. O argumento seria o de que toda injúria racial é obrigatoriamente racismo independentemente de contexto. Ele aceitou esse argumento e retratou-se.

O argumento, no entanto, é equivocado. Há, sim, um estímulo a ofensas racistas ao Vinícius Junior decorrentes do contexto. O torcedor de futebol não vai ao estádio para ser mero espectador. A partida de futebol, para o torcedor, não é mero espetáculo. O torcedor no estádio não assiste o jogo, mas participa ativamente desse. O torcedor quer ajudar o seu time a vencer a partida.

Caso ignoremos isso, condenamos o papel do torcedor. Se não levarmos isso em conta, passamos a tratar o público de jogo de futebol como o público de uma partida de tênis ou de uma peça de teatro. Se esse é o objetivo, tudo bem. Só que o debate aí é outro. Se aceitamos que o torcedor é engajado, temos que aceitar que ele agirá dentro do espírito de competição; e, nem sempre, isso respeitará o fair play.

VI. COMPETIÇÃO E (FALTA DE) FAIR PLAY

Isso vale para dentro do campo de jogo também. Já ouvi ex-jogador de futebol dizendo que “se um adversário deixasse a mão estendida no chão de bobeira, eu pisava nela sem o menor constrangimento.” Esse é o espírito. Não é nobre. Reconheça-se ser feio e sujo. Porém faz parte do ambiente. É da natureza da competição.

Materazzi ajudou a Itália a ser campeã do mundo ao encontrar um meio de afetar o ânimo do Zidane. Rivaldo cavou uma expulsão em semifinal de Copa ao fingir que uma bolada lhe atingira o rosto. Maradona fez um gol com a mão. Pelé acertou a cotovelada mais linda da história das copas. E isso não é só no futebol. O Detroit Pistons conquistou dois títulos da NBA tirando deliberadamente os adversários do sério (a equipe é estigmatizada até hoje, mas as bandeiras estão lá no ginásio pelos campeonatos; ninguém se arrepende).

Essa feiúra, é preciso superá-la. Dos exemplos acima, dois são de reação. Desce-se ao nível do rival e joga-se melhor que ele no próprio jogo, como fizeram Rivaldo e Pelé. Porém, pode-se fazer ainda melhor. Dessa sujeira é que a nobreza se forja. Michael Jordan admite que foi a experiência de enfrentar os Pistons que o moldou a ser o atleta que ele foi. Não bastava ser bom de basquete. Era preciso ser bom também de espírito.

VII. A NECESSIDADE DA NOBREZA

Zidane e Vinícius Jr, por maior que seja a capacidade que tenham de produzir o belo, não são artistas. Eles não trabalham como atores numa peça. Eles não podem esperar de colegas de profissão e do público, o mesmo comportamento que se exige de atores e de espectadores num teatro. Eles têm que se preparar para suportar condições adversas. Eis como a nobreza se manifesta nesses casos.

Não apenas se manifesta, como serve de exemplo. Ao deixar-se abater com as agressões, Vinícius Jr cria condições para que quem não seja racista se pareça com um para levar vantagem dentro de um contexto competitivo. Isso permite que o racista extravase publicamente sua pequenez oculto numa multidão voltada a ajudar o seu time.

Se o Vinícius se abatesse com vaias, dificilmente se chegaria nesse ponto. Por outro lado, ele dificilmente jogaria no Real Madri. Vaias, ele aguenta. A injúria racial dói-lhe acima do suportável. Os torcedores rivais se aproveitam dessa fraqueza. Esse era o ponto inicial do Potter e está corretíssimo.

VIII. VIVENDO O QUE FALA

Para não dizer que estou falando em teoria, deixo dois exemplos concretos meus.

1. TREINO D’ALMA

Filho meu me pede para treiná-lo no futebol. [Nota: Ele leva jeito para isso; eu, não. Mas consigo fingir ser treinador até certo ponto.] Além de ajudá-lo no trato com a bola, já fiz treino para a cabeça. Enquanto a gente jogava ou fazia os exercícios, fiquei falando m… Provocações e flautas. Ele saiu do sério, perdeu o prumo, e não fazia mais nada bem. Brigou comigo.

Parei o treino e lhe expliquei a lição. Justamente, se o adversário descobre essa fraqueza dele, explorá-la-á para tirar vantagem. Ele precisa aprender a não se deixar abater, ainda que doa. O treino serve para calejar o corpo e a alma. O time precisa contar com ele. Ele não pode deixar o time na mão, como o Zidane deixou a França em 2006. Ele segue ficando bravo, mas está aprendendo.

2. FILHOS NO CLÁSSICO

Agora, este relato parecerá fanfic. Ainda bem que minha esposa não me deixa mentir.

Temos familiares colorados; vários, crianças como os meus guris. Nós nos damos tri bem, todos. Vimos alguns deles antes do Grê-Nal, inclusive.

Era o primeiro clássico dos meus filhos in loco. No estádio, houve diversas músicas que menosprezam os torcedores e atletas do rival e são repletas de palavras de baixo calão. Eu cantava despudoramente. Eles até entraram na onda, mas se sentiram constrangidos a ponto de me perguntar sobre essa contradição.

Respondi-lhes sinceramente. “Nada disso é verdade. Vocês acham que ‘o Inter nunca ganhou de ninguém’? Que eu quero o mal da bisa, dos tios e primos de vocês? Que eles não valem nada? Que eu quero brigar com eles?

– Mas por que se canta isso, então?

Eles querem ganhar da gente, ué!? A gente não gosta de perder para eles. Nós queremos ganhar. A gente canta para eles; e eles cantam para nós. No futebol, pode. É bobagem. Se sabe que é bobagem. Se não acreditar, se ficar aqui dentro, tudo bem.

É como eu enxergo isso, ao menos. Não faria sentido para mim, se fosse diferente. Essa é a razão para que, quanto mais incomodar, quanto mais mentira for, melhor – melhor, ao menos, no contexto da disputa.

IX. A VERDADE DO VINÍCIUS

É nesse contexto que uma partida de futebol se desenrola. É nesse contexto que os jogadores de futebol trabalham. É parte da tarefa do torcedor criar adversidades, enquanto os atletas têm o dever de superá-las. A superação, inclusive, é o melhor modo de combatê-las.

No caso do Vinícius Jr, sem efeito, o torcedor pode até começar a provocar, mas só o racista sincero seguirá fazendo. E seguirá fazendo como forma de se defender da dor que sente diante da superioridade do outro.

É nesse momento, pois, que o mais relevante desse imbróglio se revelaria: a verdade do Vinícius Jr é maior do que a mentira de seus agressores.

O Vinícius só precisa aprender a acreditar nisso para se resolver toda a questão.

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