ISRAEL SIMÕES | Palhaços de Brasília

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Eu tinha oito ou nove anos de idade quando meu pai me levou ao circo. Não guardo muitas lembranças da infância, mas esta imagem é nítida: a lona vermelha e branca, a arquibancada de ferro vasado, o palhaço espremendo o nariz, molhando a plateia. Algum felino apareceu naquele palco, mas a recordação do elefante é mais viva (sempre fui mais impressionado pelas proporções do que pelos detalhes…). Ao final do show, o globo da morte: quatro motoqueiros presos em uma gaiola, acelerando em linha reta, sob o risco de se chocarem. Meu pai parecia empolgado. Eu, nem tanto.

Talvez porque não havia um mistério. Não era um show de mágica, era um circo, daquele humor escrachado que simula peidos e tombos. A plateia também não era tão numerosa, o que me dava a sensação de fazer papel de bobo estando ali (atrasado, pobre, sempre fui meio metidinho).

Lembrei do circo porque, ontem, falei que a política brasileira era um circo, esses comentários que a gente solta sem muita gravidade, conversa de boteco. No caso entre mim e Paulo Sanchotene, meu colega de Esmeril, mas nada de cerveja ou torresmos: a prosa foi no campo de comentários do seu último artigo, “Ninguém é democrático”. Ali Paulo ajusta o termo “democracia” à realidade brasileira, esclarecendo que “governo do povo”, em nossos dias, está mais para oligarquia de burocratas e políticos profissionais, considerando o enorme inchaço da nossa máquina pública.

Pense no João Doria comendo pastel nas ruas de São Paulo, foi o palhaço que me veio à cabeça. Acrescente o Boulos, a Dilma e o Fernando Haddad. Ok, a Maria do Rosário também, agora o circo está completo.

Mas Paulo tem razão, metáforas podem ser imprecisas, então deixe-me aprimorar o argumento.

A política é o circo inovado, bem mais sofisticado. Nela não há máscaras, mas expressões sinistras intercaladas com sorrisos frágeis, estilo Heath Ledger. As reais intenções do político nunca estão tão evidentes.

O fingimento se junta à franqueza no interessante tabuleiro da disputa pelo poder. E por este jogo me causar mais curiosidade do que revolta, nunca encampei o sonho de desinfetar Brasília, que fisga alguns patriotas no nível da psicose. Seria como remover o excesso de maquiagem de uma mulher até ficar de cara limpa. Não há necessidade. Deixem uma corzinha.

Quando Bolsonaro corta o cabelo na barbearia mais fuleira da vizinhança, sabemos que há uma medida de realidade e fantasia. Do mesmo modo o coque que a nossa atual ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, ostenta há mais de duas décadas: como explica-lo senão pela preservação fictícia da persona de moça lavadeira do seringal? De mulher abnegada, amante das florestas, apesar de uma vida inteira sustentada por cargos públicos.

A política moderna não é um circo. Não vemos narizes vermelhos, nem perucas, nem sapatos de bico sobressaltado. Também não é coisa pública feita às claras, pelas praças, como na democracia ateniense. Está mais próxima de um blend que você degusta distinguindo as diferentes nuances de uva: o embuste fica nas entrelinhas.

Essa dinâmica de Gotham City, meio caótica, meio ordenada, pode angustiar os dois lados da disputa. Os conservadores, sempre muito limpinhos, ficarão constrangidos quando um de seus representantes for pego se aproveitando das brechas da lei. A mídia se levantará como paladino da moral e dos bons costumes e eles baixarão a cabeça, em sinal de reverência. Já os progressistas, contaminados pela paranoia foucaultiana de denunciar intenções por trás dos discursos, cairão em eterna contradição pelas suas próprias artimanhas.

Entendam de uma vez por todas: nem paraíso nem inferno, política é vida terrestre. Bem vivida, divertida, sofrida.

Quem quiser fazer política deverá adentrar neste confuso Cirque du Soleil, não se perdendo entre as acrobacias reais e ilusões de ótica, distinguindo a arte genuína das luzes e fumaças que amplificam nossas sensações.

Curtindo o show de mágica, que às vezes parece circo.

Do mesmo modo que o maníaco pode parecer palhaço.

Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2023

1 COMENTÁRIO

  1. Obrigado pela menção.

    Política é jogo, teatro, circo. Mas isso seria algo muito diferente de qualquer outro setor da vida humana?

    Um médico veste a máscara de médico para me atender, mas no elevador do prédio ele é meu vizinho. Não é assim? Com a política, por que seria diferente?

    O problema, então, não estaria na má atuação dos atores?

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