ISRAEL SIMÕES | A Lama do Dalai

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Era o mês de fevereiro do ano de 2019 quando o meu orientador mandou eu jogar 73 páginas de dissertação no lixo. Naquela data eu cursava o terceiro semestre do mestrado em Administração na UFMG, já com bem menos interesse em gestão do que em pessoas. Falo dos instrumentos técnicos de gestão, não me encantavam mais, porque eu sabia que o sucesso das organizações dependia de aspectos humanos mais profundos do que planilhas e indicadores de desempenho (foi quando descobri que as tais ciências sociais aplicadas têm um certo complexo de superioridade por não serem nem tão sociais quanto as ciências humanas, nem tão aplicadas quanto as exatas. Todo administrador jura que é um psicólogo mais pragmático e um engenheiro menos enfadonho…).

O orientador, no meu caso, era o Professor Carlos Alberto Gonçalves, que considerou aquele projeto de pesquisa sobre a fusão das marcas Fiat e Chrysler um tanto sem graça, pouco inovador. Ele também era coordenador da pós-graduação em neurociências da universidade e, percebendo a minha inclinação para explorar cavernas, aqueles recônditos obscuros da psique humana, passou a dizer que eu tinha um futuro promissor se adentrasse naquele campo de investigação. E me deu um desafio: encontre o insight, a ideia genial, respeitando nossa linha de pesquisa, mas incorporando a nova moda científica de dissecar cérebros. Traga até mim um projeto de neurociências e conversamos…

Poucos dias depois, em uma reunião com uma estagiária de Design incumbida de desenvolver um site para o centro esportivo que eu gerenciava, percebi algo curioso: uma certa agitação em suas mãos. Ela segurava o mouse de uma maneira estranha, dedo indicador frenético, correndo as páginas de internet como um feed de Instagram. Pareceu-me um automatismo, um movimento involuntário de uma jovem digitalizada e ansiosa. Guardei aquela cena na memória, crente que ela poderia indicar o caminho da minha pesquisa.

Na semana seguinte peguei um voo para Curitiba, para apresentar um artigo em um congresso acadêmico. Resolvi folhear algumas revistas e logo a primeira que peguei trazia um grande cérebro na capa. Era uma edição da Exame com o título O Segredo da Mente Produtiva. Ali tive o meu primeiro contato com as práticas de mindfulness, uma técnica de meditação guiada similar à meditação zen budista, devidamente ocidentalizada por um médico americano. Os conceitos de atenção plena, enquanto um esforço por aterrissar a atividade mental no momento presente, eram exatamente o que eu buscava. Aquela menina de dedos instagramados estava inconsciente dos padrões estímulo-resposta que haviam se incorporado no seu comportamento. Se havia um treinamento voltado à tomada de consciência, à metacognição e à observação do corpo, era ali que eu deveria iniciar minha pesquisa exploratória.

Os meses que se seguiram foram de uma incursão pessoal no orientalismo moderno, o que inclui a devoção a uma versão de budismo ecumênica, pop e cheia de adeptos no mundo das celebridades. Frequentei uma casa budista para conhecer de perto o éthos daquela comunidade, incorporando a disposição física e mental dos praticantes na minha rotina diária. Se era para distinguir o valioso do enganoso, deveria provar da coisa inteira, ciente do estado de dúvida e experimentação a ser mantido, mas sem ressalvas.

A tentativa de apreender uma escola de pensamento virou uma oportunidade de crescimento pessoal única. Fui notando, naqueles longos exercícios de olhos fechados, as instabilidades, tensões e fraquezas que eu mesmo havia somatizado em meu corpo sem perceber. Hoje sou eu quem ajudo meus pacientes a se livrarem de suas dores e traumas por meio de uma diversidade de recursos terapêuticos, entre os quais a meditação e as práticas de consciência corporal.

Mas nem tudo eram flores de lótus.

As formações teóricas e treinamentos práticos eram conduzidos por moços de cachos ao vento e voz lenta que me causavam certa estranheza. Em nada se pareciam com os homens com quem eu rolava no tatame toda semana, trocando quedas de judô e golpes de jiu-jitsu. As moças, sempre muito educadas, não usavam maquiagem e tinham uma cisma repetitiva com saias estampadas, sandalinhas de Jesus, tranças, miçangas e a bendita palavra gratidão. Eu me esforçava, mas não via sentido em substituir o “obrigada” por aquelas mãozinhas em sinal de oração, sempre acompanhadas de um sussurro: gratidão.

Os chás de flores eram tão insossos quanto os biscoitinhos com gosto de nada. As almofadas eram desconfortáveis, especialmente porque eu frequentava as aulas depois do trabalho, de roupa social. Mesmo que passasse em casa, não fazia parte do meu guarda-roupa aqueles pijamas de linho deteriorado.

Mas o que me incomodava mesmo eram os discursos que intercalavam as práticas meditativas: falavam de salvar baleias, abraçar árvores, boicotar o McDonald’s, cozinhar bifes de ervilhas, perdoar criminosos, abortar crianças, tirar o Lula da cadeia. Especialmente a instrutora de meditação contratada para conduzir a coleta de dados da minha pesquisa era insistente na doutrinação misturada com lições do Buda. Uma mulher cuja meiguice escondia uma personalidade forte e um tanto intolerante.  

Filtrada pelos cacoetes da comunicação-não-violenta, a linguagem daqueles seres celestiais jamais seria classificada como “discurso de ódio”. Igualmente os atos eram sempre perdoáveis, pelo menos dentro do grupo, com fortes correntes de fraternidade e defesa mútua. O sujeito que fosse rude e intransigente com alunos questionadores, alguns dos quais oriundos de árvores religiosas distintas (mas como eu, interessados em um aprendizado abnegado), se era membro da patota, na verdade não era rude. Apenas indignado.

Aquele grupo de intelectuais ricos e veganos, com roupas de lavradores da idade média, estavam interessados em uma sabedoria de pouquíssima orientação moral, mas paradoxalmente moralizante.

Portanto em nada me estranhou ver o Dalai Lama sair incólume da polêmica cena em que sujeitou uma criança ao constrangimento de beijar sua boca, chegando a pedir que chupasse sua língua, abraçando-o contra o seu próprio corpo e lhe fazendo cócegas, num gesto tão desprezível que chega a provocar vômito. O líder do budismo tibetano é figura tarimbada nas demonstrações públicas de apreço à espiritualidade por políticos como Obama e artistas como Lady Gaga. Vencedor do Nobel da Paz, ele circula pelo mainstream como o vovozinho do olho puxado de jeito manso e trato cordial. Inofensivo.

Talvez Dalai Lama queira resgatar um costume bastante tolerado e prezado na Grécia antiga, no Império Romano, na China e em culturas africanas: o uso de menores para satisfação sexual. Foi a influência do cristianismo que libertou as crianças deste jugo terrível (contra o qual uma corrente subterrânea de promiscuidade insiste, mais do que nunca, em executar sua vingança).

Os adeptos da Nova Era são como porcos de banho tomado. Juram que são as entidades mais iluminadas e puras do universo, agem como criancinhas no jardim de infância, mas no fim acabam voltando para a lama de uma cultura primitiva erotizada e libertina. Veja os ritos cerimoniais dos estudantes nos campos universitários brasileiros, inspirados nas tradições indígenas e de matriz africana: sempre acabam no consumo de alucinógenos, orgia e bebedeira.

Pois que chupem as línguas e o que mais gostarem uns dos outros, mas não mecham com as crianças. Elas ainda têm o direito a preservar sua integridade física para além das respirações profundas e movimentos de pernas para o ar.

Felizmente, no Ocidente, ainda prevalece uma fé que ora de olhos fechados, mas que age de olhos bem abertos. Está no Salmo 121: “É certo que não dormita, nem dorme o guarda de Israel”.

Estejamos vigilantes.

Direitos autorais: BJ Graf (https://www.flickr.com/photos/bjgraf/8975004713)

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