ISRAEL SIMÕES丨O privilégio da ofensa

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Não vou dizer o sobrenome porque não quero denunciar a coitada. Apenas Luciana, era o nome dela, a professora de português das aulas mais enfadonhas e arrastadas que já tive. Por uns bons anos fui seu aluno e ficava impressionado com a mesmice que aquela moça exalava: sempre o mesmo corte de cabelo, a mesma calça jeans e uma expressão de mulher chata que faz qualquer marido passar horas no banheiro. Invariáveis também eram seus discursos diante da bagunça da turma, exigindo de nós a educação, o respeito, a cidadania, a honra aos pais, a responsabilidade de construir um país próspero, um mundo melhor. Nada naquela mulher inspirava um projeto de vida, a não ser por contraste: estudávamos para ficarmos livres daquela infelicidade prolixa às sete e meia da manhã.

Para piorar a situação, Luciana tinha o comportamento daquelas avós inconvenientes que privilegiam uns netos em detrimento de outros, conforme o nível de similitude. Era nítida a preferência pelos alunos metidos a sabichões, os puxa-saco, que se empenham nos estudos porque são feios, pouco atléticos, não lhes restando outra alternativa de sobrevivência. Nas lições de moral que dava em sala de aula, a professora vivia fazendo comparações, enaltecendo os preferidinhos como modelos de boa conduta, para o embrulho do meu estômago.

Até que chegou o dia em que um dos meninos repetentes, com mais testosterona e impaciência do que os colegas, farto daquela cantilena professoral diária, pegou o giz e escreveu no quadro, pouco antes da aula começar: LUCIANA PUTA. Uma qualificação até lógica, já que as putas também costumam trabalhar de cara amarrada, mas convenhamos: a ofensa era gratuita e desproporcional demais.

A situação, de imediato, me causou repúdio. Fiquei com pena da professora que, por um breve momento, ameaçou armar o barraco, mas logo desatou a chorar. Por um longo tempo ela ficou sentada na mesa, inconsolável, para a solidariedade das meninas, em seguida de outras professoras, então da supervisora, coordenadora e diretora.

O delinquente não se escondeu, muito pelo contrário: assumiu diante de todos a autoria da frase e teve a ousadia de justificar o feito, denunciando a conduta um tanto intragável da docente, jogando no ventilador o que nenhum de nós jamais teria coragem de dizer. Três dias de suspensão e uma conversinha com os pais, esta foi a penalidade do garoto. Para a professora, afagos e desculpas, mas ficou aquela sensação de que as coisas, dali em diante, não seriam mais as mesmas.

E de fato: nos dias seguintes Luciana adotaria uma conduta mais contida, levemente otimista, até estimuladora, ainda que constrangida. Eu diria que o seu rosto ficou mais iluminado, como se todo aquele chororô tivesse servido de catarse para os anos de frustração com a malfadada vocação do magistério.  

Ali eu entendi que o palavrão é um recurso do universo masculino para refrear a correnteza linear dos fatos, a feminilidade da mãe-natureza que tudo apazigua, condescende, reconcilia. Palavrões são como guerras: rompem a ordem vigente, abrem a ferida, denunciando o inimigo, comprando a briga, evocando aqueles instintos animalescos que, num paradoxo que só Deus explica, são necessários à defesa de tudo que é nobre e elevado. É próprio do (H)omem imprimir uma dose de violência no mundo para que não nos apeguemos às aparências de estabilidade.

Não foi assim que Bolsonaro incendiou o país contra os abusos de poder do Supremo Tribunal Federal? Em uma coletiva de imprensa no dia 28 de maio de 2020, depois de mais uma operação da Polícia Federal no esquizofrênico inquérito das fake news, o capitão bradou: ACABOU, PORRA! Acordando de supetão aqueles moços crentes que permaneciam inertes diante das ameaças contra a liberdade.

E o que dizer do Professor Olavo de Carvalho? Depois de anos alertando a intelligentsia brasileira dos perigos dos esquemas globalistas de poder, dividindo a mesa com personalidades do calibre de Miriam Leitão e Joel Pinheiro, o velho cansou. De uma atitude gentil e paciente, Olavo passou a mandar todos os imbecis que atravessavam seu caminho tomarem no olho de seus cús, ciente de que a polidez, neste país, era um instrumento de controle do comportamento do cidadão, para a execução de atrocidades infinitamente mais abjetas.

Aliás, se não fossem os palavrões, as encaradas e o peito estufado, Ciro Gomes já teria sumido do mapa. Por ainda preservar uma masculinidade em extinção é que o eterno presidenciável encontra apoiadores e território para movimentar o jogo político.

Talvez tenha sido essa macheza de periferia que faltou ao senador Flávio Bolsonaro, na última semana, ao inquirir o advogado Cristiano Zanin em sua indicação ao STF. A imoralidade do episódio é tão óbvia que só poderia provocar a afronta raivosa, mas parece que o terno azul royal do ex-advogado de Lula, a gravata slim, o cabelo lambido e o rostinho de Harry Potter constrangeram o senador a esconder suas bolas por debaixo das pernas.

Esta é outra função da palavra grosseira: desmascarar os sujeitos travestidos de bons moços cujas intenções são as mais perversas.

Não por acaso os palavrões façam alusão ao ato sexual que, como o futebol e a cerveja, atraem os rapazes justamente por sua prazerosa vulgaridade. As melhores lembranças que tenho da juventude são uns encontros noturnos com amigos da igreja, na casa de quem tinha os pais mais desatentos ou em um boteco qualquer, quando desatávamos a falar besteiras, obscenidades e xingamentos sem qualquer justificativa. Era o respiro de que precisávamos antes de retornar à enfadonha vida moderna de jovem universitário, tão distante das batalhas e cavalarias dos tempos medievais.

Para resgatar, portanto, o espírito de bravura e ousadia é que convoco meus amigos evangélicos, católicos e turistas de igreja que se permitam, de vez em quando, soltar uns palavrões por aí. Eles serão apenas a face externa das indignações e desprezos que vocês já carregam no mais covarde silêncio.

Se o caminho da santificação pede o domínio das paixões infames, ele também não se ilude em suprimi-las. Especialmente na linguagem, não tentem ser perfeitinhos, criando um mundo paralelo de purezas que, na realidade, são meras afetações. Esta é uma perigosa porta de entrada para transtornos narcísicos e histéricos.

As partes baixas do homem podem produzir os gozos mais transcendentes e as ofensas mais oportunas.

Deixem que os anjos, também aqui, nos invejem.

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