Cinema pra pensar: Dente Canino e o Mito da Caverna

Larissa Castelo Branco
Larissa Castelo Branco
Bibliotecária em hiatus que se aventura na escrita, revisora textual, metida a cinéfila e apaixonada por Comunicação e Literatura. Em constante batalha contra a desinformação e a histeria coletiva, aprendeu com a esquerda como um ser humano não deve ser.

A sinestesia dos primeiros momentos do filme, com cenas turvas e iluminação escassa, remete à ideia de estarmos adentrando em um novo mundo”

Há tempos tinha vontade de ver Dente Canino, do grego Yorgo Lanthimos, lançado em 2009. Como fã da sua filmografia, obviamente o título não poderia faltar no rol de assistidos, porém, meu delay pessoal só permitiu o feito 11 anos depois; o que com certeza me proporcionou impacto e reflexão sobre manipulação da realidade e alienação, duas pautas robustas que compõem o tema central do filme.

Muitos afirmam que a TV, a mídia, os influenciadores digitais e toda a produção cultural contemporânea são um passo largo rumo ao emburrecimento e emprobrecimento pessoal e que a família é o grande escudo protetor contra a deterioração moral, promovida pelo mundo e seus agentes caóticos. Até concordo com esta máxima, mas o luxo de duvidar do caráter dogmático desta afirmação é deveras interessante.

Desde crianças, fomos muito bem alertados por nossos pais sobre os perigos do mundo e sobre o quanto as pessoas estão dispostas a nos fazer mal. Porém, qual atitude há de se ter quando a deturpação vem do próprio seio familiar e desprepara para o mundo, castrando fases importantes da existência, como o alcance da vida adulta? Movida por este questionamento, escrevo esta crítica. Vamos ao filme.

A sinestesia dos primeiros momentos do filme, com cenas turvas e iluminação escassa, remete à ideia de estarmos adentrando em um novo mundo. No caso, na realidade distópica criada pelos pais – um casal de meia idade – milimetricamente pensada para manter os filhos – 3 jovens na casa dos 20 anos, um rapaz e duas moças – alheios ao mundo e inocentes.

Ao longo do filme, se percebe as particularidades da vida da família: os filhos aprendem palavras, mas não o real significado destas. Os conceitos de coisas como “rifle” e “mar” são completamente distorcidos, enquanto são repetidos incessantemente pela fita k7 posta pelo pai, que é o único que possui contato com o mundo real.

A sensação de lavagem cerebral é consolidada ao vermos que, na percepção dos jovens, os aviões que passam no céu viram brinquedos. Esta idéia é reforçada pela mãe, que põe miniaturas no quintal, para a alegria e deslumbre dos filhos.

O plano segue bem, conforme a vontade dos pais. Tudo que é consumido pelos jovens possui severa fiscalização, incluindo a música. Enquanto toca na vitrola da sala, Frank Sinatra é apresentado como avô do trio. Suas músicas? Livremente adaptadas pelo patriarca.

A ingenuidade dos filhos irrita e impressiona ao mesmo tempo. Completamente ingênuos, os três adultos vivem como se fossem meninos, entrando em disputas que só fariam sentido na cabeça de uma criança, por exemplo, ver quem fica mais tempo embaixo d’água.

A vida dentro do ninho familiar ocorria sem maiores interferências, até que o pai resolve levar para dentro de casa uma jovem que trabalha como segurança em sua empresa, para satisfazer os impulsos sexuais do filho.

Como a vida nos mostra e o filme confirma: ninguém está completamente alheio da realidade e uma simples influência externa estremece as bases do lar, que até então se considerava blindado.

É muito curioso quando é posto na frente de nossos olhos como o ser humano pode ser facilmente moldado em detrimento da vontade de outro. A vida se desenrola como se os indivíduos fossem marionetes e Dente Canino explora a questão de forma magnânima. Aos filhos é ensinado que o ciclo da vida sob a proteção das asas da família é irrompido quando o dente canino cai e nasce novamente. Daí se explica o título do filme: a queda do dente é o grito de liberdade, que pais narcisistas nunca esperam ouvir.

Não há uma explicação contundente sobre a motivação dos pais para adoção de tal estilo de vida, mas ninguém as procura. Afinal, o mais importante é romper as correntes com tudo aquilo que nos limita. O jeito de Lanthimos para criar situações caóticas e claustrofóbicas é único e o filme é carregado de uma aura confusa.

É necessário atenção e compreensão do propósito do filme, caso contrário, pode confundir quem assiste. É um filme interessantíssimo, que traz de forma incrível o Mito da Caverna e o nosso julgamento sobre aquilo que consideramos realidade e que nos impede de sair da zona de conforto, que na verdade nos acorrenta.

Dentre outros temas: controle parental, pressão psicológica, manipulação, incesto e abuso sexual. É uma pancada em forma de filme (metáfora muito bem explicada na cena com a surra de fita VHS).

O filme peca apenas no final, pois não nos dá a oportunidade de presenciar o final do arco dos filhos. Ficamos à espera do ponto alto de rebeldia e isso não acontece, infelizmente. No mais, é um filme que pode ser considerado estranho (ou interessante), bom pra quem quer causar um “boom” na mente. 


De todos os animais selvagens, o homem jovem é o mais difícil de domar.

– Platão

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