A sociedade dos consumidores de escândalos

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Por que nos contentamos com tão pouco?

Todas as manhãs, acordo, pego meu café e me concentro naquele momento simples mas essencial para começar o dia: o momento de contemplação do nada, no qual fico organizando a mente e pensando nas atividades que logo farei. É um privilégio poder desfrutar desse momento, são os bônus do home office. Então, em um gesto quase que automático, ligo a TV. “Homem mata mulher para roubar o carro”. Mudo o canal. “Mulher é encontrada em estado de decomposição à beira de um riacho”. Mudo novamente, já me sentindo desconfortável. “Guerra de facções faz mais uma criança de vítima”. Sensação de claustrofobia, meu ânimo vai se esvaindo entre cada chamada. Tento novamente, outra emissora. “Mulher mata filho e esconde o corpo”. Sem condições de manter a televisão ligada a não ser para transmitir minhas playlists. Bendito seja o Chromecast.

Não sei como é a programação nos outros estados, posso falar apenas pelo meu, o Ceará. Aqui, a programação televisiva diária tornou-se uma aglutinação bizarra de programas cujo conteúdo é dedicado à espetacularização de crimes. Ligar a televisão virou uma tormenta, pelo menos para mim.

E essa questão se tornou um flagelo para mim. Em minha mente, é impossível conceber que tais programas possam ser considerados fontes de informação, quem dirá, jornalismo. Para mim, que bebo da fonte de Mario Vargas Llosa, o ofício jornalístico é permeado por princípios como a investigação, análise minuciosa e checagem dos fatos, exatamente para conduzir a sociedade à racionalidade, sem se esgueirar pelos becos da histeria. Infelizmente, o que se vê é o contrário: somos bombardeados por um espetáculo grotesco de notícias escabrosas disfarçadas e informação e o mais grave de tudo isso, ninguém fala: alguém ganha muito dinheiro com essa banalização imprópria de atrocidades. E sucesso.

Lembro que, em certa feita, um jornalista anunciou a uma mãe a morte de sua filha. A mulher, incrédula, foi assistida por milhares de telespectadores, exposta em um momento apoteótico de fragilidade emocional, transformada em um espetáculo sob a justificativa de que ali estavam mostrando a realidade, que tal cena era um furo de reportagem, transmitida para milhares de indivíduos sedentos para satisfazer uma curiosidade mórbida e sádica.

Muito me inquieta tal tema. A mídia se tornou um palco dos horrores para atender a necessidade de pessoas desprovidas de bom senso ou as pessoas passaram a banalizar barbaridades porque a mídia ajudou a construir tal conteúdo? Talvez nunca entenderei. Enquanto isso, tinge-se tudo de vermelho-sangue: as páginas de jornais, os programas de TV e as plataformas virtuais.

Obviamente, em momento algum tenho o intuito de desmerecer o problema da violência, que deve ser retratada como um forma de alertar sobre os perigos aos quais somos expostos diariamente. Meu incômodo é com a frieza e desrespeito com os quais casos horripilantes são tratados: tais atos nem causam mais impacto nas pessoas e isso é extremamente perigoso, caminhamos a passos largos para a normalização da bestialidade. Já é comum, pelo menos aqui, ver pessoas almoçando enquanto acompanham as mais terríveis notícias na mais absoluta tranquilidade de seus lares.

No que se transformou nossa cultura? Aqui, me refiro ao termo cultura enquanto um conjunto de hábitos que são observados na construção de uma sociedade. Não há espaço aqui para definir o que é a alta cultura, a cultura popular, faço menção à soma de vivências e costumes que nos caracterizam.

A perversão da informação trouxe à tona o que há de pior para a formação intelectual das pessoas: a aceitação dos escândalos, calúnias, fofocas e como já dito, a espetacularização de temas que aos poucos deixam de ser delicados para fazer parte do cotidiano. E o pior de tudo: milhares de pessoas são adeptas ferrenhas e consomem estes conteúdos desenfreadamente, falam de assassinatos, roubos e latrocínios como se estes fossem as novidades mais maravilhosas a serem comunidades aos amigos, parentes e vizinhos em um roda descontraída de conversa. O que este comportamento significa?

Bom, ao meu ver, tudo isso é fruto de uma construção cultural há muito projetada para contribuir expressivamente com a imbecilização das pessoas, movidas apenas pelo impulso de consumo sem filtro e mais rápido possível de informações, ainda que estas não lhe agreguem em nada. A informação e os produtos culturais não precisam ser bons, bastam o apelo escandaloso dos apresentadores.

Estes sintomas revelam uma sociedade adoecida, cujas preferências abraçam aquilo que é frívolo e violento e lhes entorpece, transformando as pessoas em anunciadores de maus agouros. Em um passo remoto, os meios de comunicação e a cultura funcionavam como mecanismos de conscientização que auxiliava na manutenção do discernimento. Hoje, foram reduzidos a meros meios de distração, as figuras dos jornalistas responsáveis e humanos vêm desaparecendo e ainda que haja figuras respeitáveis na mídia brasileira, estes optam por se manterem em silêncio para não caírem no ostracismo.


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— Barão Vermelho

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