BRUNA TORLAY丨Tréplica a Sanquixotene

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Ontem o caro colega colunista Paulo Sanchotene, incendiado pelo amor à polêmica, um possível resquício da sua formação em direito e atuação advocatícia, cismou de dar-me um pito sobre excesso de entusiasmo com um filósofo que conhece bem mais do que eu. Curiosamente, a frase que ele evoca para esfriar minha admiração provoca-me exatamente o contrário: um franco e fleumático assentimento, o que me leva a dois pensamentos: o sentido do amor à polêmica, mesmo quando ela é improvável; o desespero real da juventude em achar chaves perfeitas ao enferrujado cofre da cultura – morada de um tesouro para sempre indecifrável.

Sobre o primeiro pensamento, tenho a sincera impressão que Sanquixotene sabe, no fundo, que eu não considero o componente gnóstico presente à vertente revolucionária do pensamento político moderno, mais quando se diluem em movimentos que na matriz filosófica que os origina, uma chave definitiva, necessária e suficiente para compreender almas que pensaram a realidade segundo categorias díspares. Mas fato é que, talvez por eu ter dado enfoque ao interesse desse componente, investigado por Voegelin de forma até então inédita, razão de eu atribuir-lhe a sacada, faz ele disso a oportunidade para indicar o risco da absolutização de conceitos na análise do pensamento humano – de qualquer ser-humano possível.

Curioso é que eu realmente julgo ridículo definir uma “chave absoluta” para explicar a modernidade, algo tão facilmente vendido por picaretas e chefes de seitas informais. Eu só tenho em Platão um exemplo fundamental porque os exercícios espirituais que ele nos inspira são o próprio antídoto contra uma vida intelectual presa às chaves miraculosas. Eu leio há uns 15 anos os filósofos modernos e adoro indicar, neles, o caráter sincrético. São anti-aristotélicos puros ou imitadores de Aristóteles que, por isso mesmo, têm o dever de rejeitar erros do edifício do grande cientista grego? São homens de gabinete loucos por poder ou investigadores da natureza sinceros, motivados pela redução das dores lancinantes de doenças até então desconhecidas? São loucos ou entusiastas de se desenvolver um aspecto do conhecimento do mundo que, de fato, suavizou a vida material dos homens? Humanistas, estoicos, gnósticos, neoplatônicos, retores, sofistas ou poetas? Todo filósofo interessante, antigo ou moderno, carrega em si a complexidade da cultura na estrutura da alma exteriorizada enquanto escrito potencialmente revelador de algum aspecto da realidade. É isso o que torna Montaigne interessante, tenha sido ele ou não o primeiro católico de IBGE do mundo secular.

Eu honestamente me interesso muito pouco por chaves definitivas, uma vez que elas são a falsificação do pensamento – um discorrer infinito, em movimento bilateral, sobre absolutamente qualquer coisa. Mas o Sancho acerta ao trazer o problema à tona, pois certamente choverão jovens entusiastas, loucos por bulas potencialmente marcantes, diante de meu modesto vídeo sobre as diferenças entre gnosticismo antigo e moderno, este um componente potencialmente verdadeiro em teorias políticas revolucionárias de muitos modernos, em especial aqueles cujas ideias inspiram movimentos de massa. Isso vai acontecer e pode-se creditar a mim responsabilidade pelo dano, uma vez que, diante do pendor humano às simplificações e da ânsia juvenil por categorias estacionárias, teria sido preciso explicar, em adendo ao vídeo, essa obviedade que explico agora.

A melhor coisa que pessoas curiosas têm a fazer é valer-se de grandes sacadas para acrescentar ao seu entendimento de algum assunto um novo foco de luz. Sempre tendo em mente, obviamente, que os focos de luz não se confundem com a fonte de luz. Em outras palavras, o ter vislumbrado a verdade de um ponto de vista privilegiado não é sinônimo da verdade em si mesma. Justamente porque ela, a verdade em si mesma, não é alcançável pela razão individual, persiste a filosofia ao longo da história, essa linha infinita através da qual vidas humanas surgem como pontos, ao redor de um ponto circunferencial ao qual é impossível igualar-se.

Breve, sendo esta a perspectiva a partir da qual admiro a associação entre gnosticismo (a heresia antiga) e religião civil (o gnosticismo moderno) pensada por Voegelin, categoria que ilumina o entendimento de muitos sobre algumas almas e certas tendências gerais de pensamento, sempre próximos ao espírito revolucionário, tendo a pensar que Sancho está errado sobre mim, mas certo quanto ao problema, razão pela qual endosso o espírito de sua coluna publicada aqui ontem, mesmo que recuse a letra.

E o pensamento sobre o amor à polêmica? Bem, eis o espírito que propicia o desenvolvimento do assunto, exigência típica das almas educadas pela implicância socrática, aquela maravilha que trouxe à tona a tensão permanente em torno da ideia em Platão; e a sistematização da lógica em Aristóteles. O amor gratuito à polêmica visa a verdade, razão pela qual, mesmo irritante, é sempre um bem.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Já imaginara uma reação tua nesse sentido, Bruna. Tanto foi assim, que coloquei isto na réplica:

    “A Bruna é filósofa e não é chegada em puxassaquismos. No vídeo, no entanto, ela se empolga com o trabalho de Voegelin um pouco além da conta. Por isso, resolvi escrever sobre isso hoje.”

    Coloquei justamente para reforçar que meu ponto era sobre o vídeo.

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