BRUNA TORLAY丨Sobre a representação poética da doença no filme “A Baleia”

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Quando o longa “A Baleia” estreou, causando furor na crítica e rasgados elogios à atuação de Brendan Fraser, que engordou 100 quilos para o papel, deixei passar. Não vi o filme, mas mantive-o numa lista de espera de pendências não urgentes. Acabei o vendo ontem à noite para acordar esta manhã pensando num assunto que remonta a Horácio.

Na Arte Poetica, ensaio que exprime a alma da estética clássica, o poeta latino cunha a famosa máxima ut pictura poesis, que significa “a poesia é como a pintura”. Ambas as artes são formas de imitação da natureza, ainda que o manejo verbal da realidade o seja de maneira menos explícita que a pintura. Plutarco ecoa a sentença explicando que “a pintura é poesia calada e a poesia, pintura que fala” (De gloria Atheniensium, 346 F). Num sentido, portanto, a poesia se presta a imitar a realidade como faz a pintura. Mas a equivalência entre as artes não é absoluta.

A pintura é inepta a imitar, por exemplo, o impacto do movimento sobre o espectador. Imaginem o crescente sentimento de horror numa criança que vê um monstro marinho saindo aos poucos da água, numa baía onde o mar é como um lago. Ela estava ali brincando calmamente, na beira do mar, até ser pega de surpresa por uma criatura cuja extensão se avoluma aos poucos, conforme ela sai das águas. A pintura tem apenas um instante para retratar o que a poesia imita segundo a segundo, com recursos justapostos de imagem, sonoridade e torções verbais capazes de parodiar a intensidade crescente dos tremores de horror do espectador arrancado bruscamente ao sossego.

Se a poesia é como a pintura quanto à capacidade de representação da realidade, a pintura não é como a poesia quanto à amplitude da imitação. Bem, pelo menos assim era até surgir o cinema para movimentar os quadros e fazê-los falar. Eis na sétima arte os recursos da poesia incrustados nas artes visuais. Será o melhor dos mundos? Não necessariamente, uma vez que nem tudo o que emociona, ao ser imaginado, agrada ao ser visto.

É o caso do grotesco trágico. Tocante e belo, sempre que descrito para ser imaginado – consoante o grau de tolerância do leitor ao horrível, quando representado visualmente, pode causar uma espécie de repulsa insuportável, interferindo na apreciação do traço trágico próprio às doenças de tristeza. Por isso, o filme estrelado por Brendan Fraser contém um risco brutal, do ponto de vista estético. Do que se trata? Os últimos dias de vida de um obeso mórbido tentando descobrir a única coisa realmente boa que havia feito na vida. O seu legado, se é que havia algum.

Tudo ao seu redor é doença e desatino. Compulsões sintomáticas de uma depressão profunda, representada não apenas no corpo horrível e repugnante do personagem, como também em cada detalhe da casa. Na obesidade mórbida do protagonista, temos a representação poética da mais explícita incapacidade de cuidado de si e autocontrole; e da mais ferrenha compulsão à autodestruição. Ao longo do filme, vemos o personagem colaborar ativamente para sua morte, enquanto busca desesperadamente uma via para transcender a dor, de extensão semelhante à sua forma física; ou simplesmente estampada nela. Mas as cenas são difíceis de suportar, e não passariam de mau-gosto se o sentido interno não fosse tão bem comunicado.

Obviamente, não é um filme sobre obesidade mórbida, mas sobre a extensão que a tristeza pode alcançar em nossa vida, dominando-nos a ponto de fazermos do próprio corpo uma carruagem da morte. Não é um, o suicida do filme. São dois. Mas o segundo suicida, o protagonista, encontra em tempo, à beira da morte, a única razão de viver realmente sólida: o amor. Embora já estivesse condenado, por ter feito de si uma bomba-relógio de infarto fulminante, encontra uma forma de dizer à filha, que abandonara aos oito anos para viver um romance arrebatador interrompido pelo suicídio do parceiro, que a vida valia a pena ser vivida. Tudo por meio de uma redação que a menina escrevera alguns anos antes, a respeito do clássico Moby Dick, de Melville, a baleia branca perseguida pelo capitão Ahab. Uma redação que o protagonista recita para si mesmo o tempo inteiro, como se o escrito guardasse o segredo da felicidade que ele não foi capaz de achar, mas a filha, ao redigir sobre o romance, entendeu. Mas esqueceu depois. E antes de morrer, ele espera poder recordá-la do que ela havia aprendido com a baleia, de modo a não repetir a desastrosa e inútil saga de Ahab (e a sua própria), cuja vida não ganha sentido com a morte do monstro, uma vez que a felicidade não está na destruição, mas no amor.

Um filme difícil de fazer, marcado pelo desafio estético maior – a representação visual do grotesco – e salvo pela beleza superior da mensagem, triunfante sobre todos os símbolos mobilizados para comunica-la. Eis que a pintura ali se equipara à poesia. Da forma mais inusitada possível, mas incrivelmente eficaz.

Infelizes daqueles que enveredaram por interpretações superficiais. Moby Dick é o maior clássico da literatura americana, e o tributo que lhe presta o filme conseguiu fazer jus à marcante beleza da obra.

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