BRUNA TORLAY丨O Fraco Napoleão de Ridley Scott

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Ainda em exibição nos cinemas, Napoleão, de Ridley Scott, com Joaquin Phoenix no papel título, é incrivelmente chato, apesar de bem executado e tecnicamente exemplar. Mas é ruim porque desfigura o personagem histórico, acentuando uma vida sentimental desinteressante; estetiza fatos históricos trágicos, como a batalha de Austerlitz, e não menciona seu legado político efetivo. Chato, portanto, ainda que bem executado.

Comecemos pela parte mais incômoda: o protagonismo de Josephine, primeira esposa de Napoleão. O comandante mais célebre da história francesa moderna lia todos os dias e tinha cultura considerável. Homem de inteligência acima da média, fundou um banco e redesenhou Paris. Representa o homem de estado plenamente moderno, misto de herói popular e burocrata meticuloso. Estrategista de fato, não só em campo de batalha, mas na própria vida, usou o próximo de escada para alçar-se ao poder, que só perdeu por se ter deixado cegar pelo excesso de triunfo — e desconhecer a loucura imprevisível dos russos, que lhe pregaram uma bela peça. Não parece muito o tipo de homem que passa a vida choramingando de amor, dependente das barras da saia de uma mulher. Sabe-se que teve amantes durante seu casamento com Josephine, e não que tenha interrompido a expedição ao Egito por morrer de dores de corno. Ainda, é evidente que a amizade de ambos ao longo da vida, mesmo após o término do casamento, devia-se à inteligência e cultura política de Josephine, bem relacionada nos círculos de poder da época, e cuja filha foi casada com o irmão de Napoleão, que ocupou o trono da Holanda. Que vemos no filme?

Uma mulher vulgar cuja influência sobre Napoleão se baseava em obsessão erótica. Como é possível que um roteirista tenha acentuado a sexualidade de um homem e uma mulher de histórico bem distinto desses participantes cabeça-oca do Big Brother, enquanto a política europeia estava em chamas e este mesmo homem foi um dos líderes que participou da reestruturação do poder, dos territórios e das alianças? Napoleão se distinguia em diversas disciplinas, foi avaliado pelo matemático Laplace quando se formou, ele próprio se notabilizava pelos finos conhecimentos matemáticos, escreveu obras poéticas e históricas, incluindo uma sobre a expedição que liderou ao Egito, de claro propósito estratégico, do ponto de vista militar, assim como arqueológico. Mas que faz o roteirista? Reduz um sujeito inteligente, emocionalmente forte e politicamente atuante na Europa em plena convulsão como o cachorrinho de estimação de uma aristocrata vazia e devassa. Seria redundante observar o absurdo de dar tanto espaço a um coadjuvante na vida de Napoleão, tendo ele sido cercado por tantas personalidades interessantes, que mereciam no mínimo menção mais digna do realismo que o filme aparentemente ambiciona.

A cada cena das grandes batalhas lideradas por Napoleão, assim como na célebre cena de sua coroação, fiquei com a sincera impressão de que o diretor estava empenhado, unicamente, em recriar com recursos audiovisuais as grandes telas que registram a ascensão e queda de Napoleão. Porque é a única coisa interessante do filme: os quadros-vivos baseados nas pinturas da época. Um filme estético na acepção pejorativa do termo, isto é, um filme meramente estético — sendo este atributo obrigatório em qualquer filme digno do nome, mas insuficiente como recurso.

E Joaquin Phoenix?

Paira no ar a seguinte dúvida: ele foi mal escolhido para interpretar Napoleão, ou seguiu ao pé da letra uma direção equivocada? Temos ali um homem fraco e de fisionomia depressiva, com alguns momentos de altivez, e outros de loucura. Nada do calculismo a la Richelieu que marcou a vida de Napoleão. Nada do escritor. Nada do homem culto. Pouco do estrategista. Nada do político. Muito da obsessão por uma mulher e um herdeiro. Nada da inteligência política extraordinária. A julgar pelo sujeito encarnado pelo (costumeiramente bom ator) Joaquin Phoenix, Napoleão era um homem desagradável e desprovido de interesse. O ator até se parece com o general, fisicamente falando. E consegue alguns momentos de verossimilhança. Mas só. O mesmo para a Josephine encarnada pela atriz britânica que faz a jovem princesa Margareth em “The Crown”. É como ver o coringa sob efeito de ansiolíticos casado à princesa Margareth do seriado.

Não por acaso, o filme foi completamente esnobado no Globo de Ouro, em que Oppenheimer levou todas. Roteiro bom. Personagem bem construído. História significativa. Drama psicológico profundo. Estética como recurso, não alçada ao primeiro plano. O filme sobre o qual eu falei na semana passada é o exato oposto de Napoleão. Mereceu as recompensas porque é bom.

Mas minha meta não é desmerecer Ridley Scott, obviamente. Além de todos os ótimos dramas históricos que dirigiu ao longo da vida, há menos de uma década, trazia à público o magnífico Êxodo: Deuses e Reis, com Christian Bale encarnando ninguém menos que Moises. O filme foi lançado em 2014 e é simplesmente perfeito, coroando a série de superproduções históricas que ele dirigiu ao longo da vida. Portanto, concluo admitindo não entender como seu Napoleão pôde ter dado tão errado.

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