A tolerância NÃO é um “pacto suicida”
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De braço quebrado, trago um texto antigo nesta semana.
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Recebi de um amigo uma imagem que retratava em quadrinhos o que chamava de “paradoxo do tolerante.” A justificativa para o paradoxo é baseada no seguinte dilema: como o tolerante reage contra a intolerância política sem se tornar, ele mesmo, um intolerante?
A pergunta é, de fato, bastante pertinente. O paradoxo, no entanto, é somente aparente. O tal “paradoxo do tolerante” é simples de resolver; difícil, mas simples. Por mais difícil que seja sua resolução, se a solução é simples, o problema não pode ser um paradoxo.
O combate a intolerância política é tão possível quanto essencial, e não necessariamente transforma o tolerante em intolerante. No entanto, se o tolerante passar a ser intolerante para com o intolerante, ele realmente deixa de ser tolerante; tornando-se aquilo que deseja combater.
Não há, pois, um paradoxo; mas há uma armadilha. A questão é como se evitar cair nessa. Se o tolerante não pode ser intolerante para com o intolerante, como fazer para combater a intolerância e permanecer tolerante durante o conflito?
A resposta está em por que se briga. O conflito político entre o tolerante e o intolerante é similar ao do pai adulto que briga com o filho adolescente. Trata-se de uma disputa em que o adolescente quer tornar-se adulto, e o pai adulto quer que o filho se torne adulto. No fundo, ambos querem a mesma coisa. No entanto, o adolescente tem uma natural dificuldade de entender isso.
Nessa disputa, o desafio está em fazer o adolescente entender o que significa ser adulto. Passado esse ponto, pai e filho continuarão tendo seus conflitos, diferenças, e divergências, mas a natureza dos confrontos muda completamente.
Voltando à política, o intolerante entende a disputa política como um conflito entre amigos e inimigos. Para o intolerante, portanto, seus adversários políticos são seus inimigos. A comunidade política com quem esteja do outro lado, sejam tolerantes ou outros intolerantes, lhe é impossível.
Nessa disputa, portanto, é o intolerante quem sai da comunidade política. É nesse ponto em que se encontra a principal discordância entre o tolerante e o intolerante. Para o tolerante, o intolerante ainda é parte da comunidade. Apesar do conflito, o tolerante, exatamente por ser tolerante, segue amigo do intolerante.
O intolerante, estando fora da comunidade, briga para eliminar quem ele não tolera. Alguns podem propor uma condição para restituir a comunidade, mas essa condição revela-lhe à intolerância. A condição pode ser exprimida na seguinte fórmula: “se você deixar de ser você, então, estará tudo bem entre nós.” A fórmula, no entanto, esconde uma ameaça. Noutras palavras, o intolerante diz: “sai do meu caminho e te poupo.”
O intolerante pode até parecer tolerante. Há intolerantes que disputam eleições, propõe reformas, negociam, fazem alianças e acordos, etc. Isso não os fazem menos intolerantes; são apenas mais perigosos. A finalidade segue a mesma, e a compreensão sobre a natureza do jogo político e dos seus adversários permanece igual. Trata-se de mera diferença de meios.
O que faz do tolerante tolerante é justamente a ausência de um desejo de eliminar o intolerante. Pelo contrário, o tolerante briga com o intolerante para restituir a amizade perdida; a amizade que o intolerante renega. Para tanto, o tolerante inclusive aceita que intolerante continue sendo quem ele seja.
O tolerante, portanto, tolera o intolerante. O que o tolerante não tolera é a intolerância. Esse ponto é fundamental: o problema para o tolerante não é o intolerante, mas sua intolerância. Nesse conflito, o intolerante é quem briga com o tolerante; não, o contrário. O tolerante apenas reage. Essa é a chave.
O tolerante também apresenta uma condição ao intolerante para o fim do conflito, mas é essencialmente oposta àquela apresentada pelo intolerante. A condição do tolerante pode ser resumida pela fórmula: “aceito-te como és; aceita-me como sou e retorna à comunidade comigo.” Para o tolerante, só o que o intolerante precisa fazer é passar a tolerar os demais membros da comunidade — i.e., tornar-se tolerante.
Polarização não é sinônimo de intolerância. Politica é um constante exercício de tolerância para com aquilo que discordamos e para com aqueles de quem desconfiamos. A tolerância, portanto, promove divergências. Sociedades tolerantes, justamente por aceitarem divergências francas e abertas, tendem a ser politicamente polarizadas.
O tolerante não deseja o fim da disputa política. Política é conflito, afinal de contas! Só não é conflito entre amigos e inimigos, como entende o intolerante. Política é uma disputa entre amigos que discordam entre si e que toleram tais diferenças pela preservação da comunidade e pela promoção do bem comum.
A tolerância política não é paradoxal. Tal virtude apenas não é fácil de ser adquirida. Cai-se na armadilha o tempo todo. É preciso ter cuidado. Se não, acaba-se combatendo intolerância com intolerância, e quem perde nesse tipo de conflito somos todos. Isso vale para qualquer pessoa em qualquer lado da disputa política.
O difícil é quando intolerantes são os dirigentes, que impõem aos tolerantes um modelo de vida impossível de tolerar.
Não muda, Nívia. É preciso ser intolerante com a intelorência, enquanto ainda se AMA ao intolerante.