BRUNA TORLAY丨Miss Holanda, a Ditadura e seus inimigos

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Definir ditaduras do ponto de vista essencial é diferente de explicar as formas históricas sob as quais ela se realiza desde que o mundo é mundo. O autoritarismo é um componente perene do comportamento político entre os homens, daí a constante necessidade de se definir, investigar e meditar o significado da justiça, atitude oposta à tirania, o modo autoritário de governo. 

Um inimigo eterno das ditaduras são as figuras de linguagem. Que é a própria ditadura do politicamente correto senão a expressão pura dessa inimizade em especial? Figuras de linguagem são o recurso por meio do qual explicamos o que está invisível, escondido, dissimulado. Em suma, as figuras de linguagem rompem imediatamente, no campo da opinião pública, os segredos escondidos no verso do manto do rei. Qualquer rei. Até o dono da mercearia que, escondidinho embaixo do balcão, aponta o dedo ditatorialmente a quem abriu a boca para dizer algo que feriu seus sentimentos confusos. 

O pilar das ditaduras, diga-se de passagem, é a fraqueza humana por ditadores — pessoas de soberba desmedida que se apresentam como condutores legítimos do destino geral dos homens, contra os quais se torna pecado mortal fazer piadas; crime hediondo, recusa-los por donos absolutos do ser e do saber geral.

Se um inimigo eterno das ditaduras são as figuras de linguagem, que desnudam tensões inconfessas, mas profundamente verdadeiras, um amigo obrigatório das tiranias é o sentimentalismo político. A paixão ardente de amantes temporários que, inflamados de amor, dão a vida e os dois rins àquele que lhes prometeu o paraíso. Tiranos são como malandros que sequestram corações incapazes de se libertar de quem os trata mal, usando-os como uma caixa de sapato velha. A perversão do amor, afeto permeado pela vontade, nossa capacidade de escolha diária e consciente; a perversão do amor é a paixão cega às substâncias intoxicantes, ou às almas que nos impõem indignidades travestidas de dignidades, atitudes mesquinhas que se descrevem como atitudes nobres. 

As figuras de linguagem acabam com esse fugaz encantamento, de modo que qualquer tirania precisa ressignificar dicionários, suprimir vocábulos, subverter a linguagem por meio da qual almas individuais comunicam-se entre si, sem passar pelo juízo daquele que deseja definir como elas devem sentir, pensar e dizer. Mas o que são figuras de linguagem?

Imagine a Miss Holanda que se aproxima de você, ostentando seu imponente pênis amassado na tanga de lycra, e diz: “Sou a mulher mais bela do país”; ao que você responde: “E eu sou um mictório de cerâmica repleto de medo”. A segunda frase contém atribuição de um traço exclusivamente humano (ter medo) a um objeto (mictório de cerâmica). O nome dessa figura de linguagem é prosopopeia. Mas a mesma frase contém ainda o uso de metáfora: a descrição do sujeito (eu) mediante um objeto diferente dele (mictório). Abarca a frase toda mais uma figura de linguagem, chamada ironia, que nos permite dizer uma coisa para indicar o oposto do que se diz — quanto à nossa frase ou àquela a que se responde.  

Também a primeira frase contém metáfora, uma vez que o termo “mulher” é usado para seres destituídos de órgãos sexuais masculinos, mas ainda assim pode ser evocado para descrever um ser que se arrogue qualidades semelhantes ao ente “mulher”. Um homem vestido de mulher que diz “Sou a mulher mais bela do país” é como a garota de 7 anos cercada de 8 irmãos meninos que pronuncie uma frase do tipo: “Eu sou a única mulher dessa casa”.

Numa ditadura, contudo, pode acontecer de se redefinir por lei o termo “mulher”, atribuindo-o a toda e qualquer coisa que lembre os traços físicos possuídos por mulheres; e identificar a resposta “E eu sou um mictório de cerâmica repleto de medo” como ofensa temível a uma apresentação literal (e não metafórica) por parte do interlocutor. O que aconteceu? Baniram as figuras de linguagem, atrelando às frases sentidos rígidos (com o perdão da ironia) e retirando dos interlocutores a possibilidade de imbuir um conjunto de termos qualquer de significados extralinguísticos. A disciplina escolar chamada “interpretação de texto”, aliás, versa o exercício de captar significados extralinguísticos de proposições agregadas, isto é, um texto qualquer formado por um número específico de parágrafos. E a expressão “analfabeto funcional” se refere a pessoas incapazes desta habilidade.

Todo tirano tem muito a ganhar ao banir as figuras de linguagem do universo da comunicação. Ao fazer isso, ele confisca das almas o poder de explicar o absurdo, habituando o povo a repetir que a grama é marrom, de modo que não faz sentido regá-la, por exemplo. Aos poucos, a comunicação definha e o controle do pensamento se torna cada vez mais eficaz. O segredo de manter a nova lei funcionando, é claro, é atrelar ao povo uma paixão cega pela razão da dita lei, de modo que os sentimentos da maioria se voltem contra o primeiro infeliz que ousar ressuscitar a metáfora.

Breve, é perfeitamente possível responder ao resultado do Miss Holanda com figuras de linguagem, contanto que não se viva sob ditaduras. Mas se eu fosse você a viver sob alguma, tomaria cuidado com o espírito, e passaria a venerar a letra.

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