BRUNA TORLAY丨Caso Tio Paulo e a Moral Universal

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

O ASSUNTO

Há inúmeros argumentos, alguns até persuasivos, em defesa da relatividade dos valores morais humanos. Contudo, a realidade tem batido essa corrente de pensamento há muitos séculos por meio de exemplos concretos que revelam a universalidade de um seleto grupo de valores: os fundamentais. O caso da sobrinha que usou o tio falecido para tentar obter um empréstimo num banco é um deles. Examinemos o tópico.

Na última semana, ganhou redes sociais, conversas corriqueiras e memes instantâneos o vídeo mais grotesco do ano: uma senhora ao lado de um velhinho sobre uma cadeira de rodas e claramente sem vida, no sentido literal da expressão, insistia com a atendente de uma agência bancária em obter algo, conversando com o falecido e segurando sua mão inerte para tentar assinar, com ela, fazendo do velhinho uma marionete, um papel. “Pega a caneta, tio Paulo”, ela dizia enquanto a cabeço do falecido caía para trás. As atendentes insistiam que o senhor “não parecia bem” e, diante da estranha situação, chamaram o SAMU. Tio Paulo saiu dali para o IML e a sobrinha, para a delegacia.

Presa em flagrante delito – estelionato explícito – a sobrinha já está na cadeia. Mas como antes de ela chegar ali, o assunto já era campeão das notícias mais bombásticas da semana, mal pisou na penitenciária, foi recebida pelas demais presas de forma hostil. Na falta de pedras, jogaram comida e água contra a nova colega de cela. A advogada precisou pedir isolamento, tendo sido atendida em razão do perigo real que ela corria.

Em suma, o Brasil parou atônito diante da tentativa de estelionato mais grotesca dos últimos anos, a qual chocou até mesmo criminosas detidas por atos das mais diversas gravidades. Esse tipo de reação geral só acontece diante de casos hediondos, aqueles que ultrapassam todos os limites da falta de bom senso, ferindo até o “código moral” dos criminosos. É uma violação tão inaceitável da dignidade humana explorar um defunto para dar um golpe bancário que a sociedade inteira entra em consenso imediato para exprimir seu repúdio. Eis uma típica prova em favor da universalidade dos direitos fundamentais.

É evidente que o conjunto de normas de um país abrange costumes específicos, os quais não necessariamente acham paralelo em outros lugares. Em razão da variedade de costumes, desde a Antiguidade greco-romana se argumenta que o direito é fruto de convenção, por traduzir o código moral específico de um povo particular. Mas se fosse assim, inexplicável seria a reação ampla de grupos e povos associados em torno de costumes diversos a atos específicos. Portanto, além das normas que traduzem o caráter específico dos povos, existem aquelas que exprimem direitos fundamentais. A vida, por exemplo, é um deles. Daí as diversas tradições específicas relativas ao mesmo tópico: o respeito aos mortos. Ainda que as formas de honrar os mortos variem, o dever para com eles é um fato universal.

A sobrinha ignorou o dever universal de honrar os mortos e isso não será esquecido. A universalidade deste dever em especial se traduz no código penal brasileiro, de forma que Erika de Souza Nunes vai ser indiciada por pelo menos dois crimes: furto mediante fraude e vilipêndio a cadáver. Mas evidentemente, não foi o furto mediante fraude que chocou o Brasil e agitou a recepção da sobrinha do tio Paulo na penitenciária, e sim o vilipêndio a cadáver.

Considerando que vivemos em profunda crise moral, mas a violação de um dever milenar acendeu a consciência de todos os setores da sociedade, dos conventos às prisões, vale apontar que a universalidade não pode ser estranha à moral. Ao contrário, é parte integrante dela, a ponto de consistir no lastro do consenso em sociedades as mais diversas, em termos de costumes, como é o caso da brasileira. Não há Carta normativa que fique de pé quando se tenta livra-la dos tópicos universais próprios à moralidade humana. Há deveres eternos. E direitos anteriores a toda e qualquer lei já elaborada na longa história dos costumes humanos.

Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2024

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Abertos

Últimos do Autor