VITOR MARCOLIN | Péssimo Natal

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Sentidos animais

A diferença entre um escritor e um intelectual/filósofo é que o primeiro só tem de ser sincero, tem de comunicar a sua experiência com a realidade da forma mais verdadeira possível para causar algum impacto, ser ouvido, chamar a atenção. Mais do que opiniões ou teorias, o escritor comunica experiências. Daí que os bons intelectuais/filósofos são também bons escritores. Deve haver uma Biblioteca de Alexandria do tamanho do atual World Trade Center apinhada de ensaios sobre o Natal cristão, na qual se podem ler títulos como “O Natal Moderno“, “A Esquisitice dos Presépios Vazios“, “O Pecado da Uva-Passa no Arroz” e outras obras de mesma natureza.

O meu Natal foi estranho. Tive a impressão de que celebrávamos não o nascimento do Redentor, mas uma espécie de cisão; foi uma meia celebração. Ficamos à margem do propósito da coisa, como se só tivéssemos nos reunido para comer, beber e disfarçar a tristeza com sorrisos tão fáceis quanto efêmeros. Sim. Foi mixuruca. E por quê? Porque fizemos tudo errado — exceto as passas no arroz, pois não baixamos tanto o nível. Havia agnósticos, protestantes e um mau católico à mesa — eu. O assunto era tão velho quanto à própria tradição cristã: Nosso Senhor não nascera em 25 de dezembro. Mas eu não era o alvo das alfinetadas, estocadas ou touchès. Não é sábio cutucar onças, lobos, ursos ou dragões com palitos de dente.

O que realmente me incomoda é a monumental estupidez daqueles que se esforçam para provar que a Virgem Maria não dera à luz ao menino Jesus naquele longínquo 25 de dezembro. Por que isso importa? O Ocidente celebra o Natal nesta data há quase 1.700 anos — os primeiros registros desta festa litúrgica datam do Cronógrafo de 354 d.C., um calendário ilustrado concebido por um aristocrata cristão romano. Se ao menos a objeção à data tradicional viesse de um exegeta, de um sábio, um doutor, alguém versado nas línguas antigas. Mas não. Frequentemente, o nariz torto está na cara de um inimigo da sintaxe da boa e velha língua portuguesa.

Negar o Natal é a mesma coisa que negar que o Logos Divino veio ao mundo em forma de homem. Ele foi concebido no útero da Virgem Maria, onde foi nutrido, desenvolveu-se e, ainda fora da vista de todos, tomou forma humana. Verdadeiro Deus e verdadeiro homem — no útero dela. O Natal, o Nascimento é a coroa do processo de gestação. É óbvio!, mas não para alguns. À mesa, eu tenho a prova de que as pessoas perderam o senso das coisas sagradas, perderam o senso de reverência, de gravidade (não no sentido newtoniano, é claro). Tudo é fluido, é maleável, é passível de mudança à revelia de toda a tradição. A fatalidade é que o único instrumento de interpretação das coisas é a “consciência” — seja lá qual seja a acepção do substantivo — do sujeito.

Meu desejo era o de acabar com tudo na força do braço, eis a verdade. Mas não. Como também sou torto à minha maneira, fui seduzido pelo panetone de chocolate com sorvete servido com fartura, pelos bolos, mousses, frutas, geleias; com os olhos marejados de tanto gargalhar, entreguei-me à diversão dos jogos de cartas na companhia de primos e sobrinhos. Até que, bem mais tarde, caí em sono profundo — sem dar à mínima para o peso da barriga. Tudo acabou como as celebrações modernas: o sentido intelectual da coisa diluído nas delícias dos sentidos animais. Que venha o Ano-Novo!

***


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2 COMENTÁRIOS

  1. “O meu Natal foi estranho. Tive a impressão de que celebrávamos não o nascimento do Redentor, mas uma espécie de cisão; foi uma meia celebração. Ficamos à margem do propósito da coisa, como se só tivéssemos nos reunido para comer, beber e disfarçar a tristeza com sorrisos tão fáceis quanto efêmeros.”

    Fazia tempo que não sentia isso. Também achei estranho o Natal deste ano. Porém, ao menos, não se atacou o sentido do Natal. Aí, já é demais. Mesmo que o único religioso à mesa fosse eu. [É sempre só eu há tempos, e isso nunca foi problema.]

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