Decifra-me ou devoro-te!
Estou lendo La Crise du Monde Moderne, na excelente tradução do Marcelo Brandão Cipolla para a Editora Estrela da Manhã. Guénon publicou este livro em 1927, depois, portanto, das profundas mudanças culturais e políticas — pelo menos — impostas pelos fatores que deflagraram a I Guerra Mundial. Ademais, ele está no entre-guerras, outro período de crise — não só econômica, evidentemente, mas cultural também. Àqueles que têm a pretensão, ou, levados pelos burburinhos dos “tradicionalistas” e “anti-perenialistas”, a mais pura curiosidade: não comecem pel’A Crise do Mundo Moderno, porque o autor faz referências não só a obras anteriores, mas a conhecimentos de História, “Religião” e Filosofia que são indispensáveis à compreensão do que ele pretende expor.
Isolei o substantivo acima entre aspas porque ele é, a meu ver, o epicentro de toda a treta guenoniana. Pelo simples fato de que este é o primeiro livro do autor que me cai nas mãos — ele deve ter escrito por volta de 20 livros –, estou aquém do necessário domínio do assunto para apresentar uma crítica (pelo menos literária) da sua abordagem. Entretanto, minha tábua de salvação são os capítulos já assimilados d’A Crise do Mundo Moderno, e acho que estou perfeitamente habilitado para explicar, pelo menos, o título do livro.
“Mundo moderno”, na acepção admitida por Guénon, é o período histórico concomitante ao fim da Idade Média; a crise a qual o autor se refere, portanto, é uma crise que se manifesta no Ocidente. É, por falta de um termo melhor, uma crise primeiramente “religiosa”, com inevitáveis consequências psicológicas e culturais — pelo menos — na sociedade. Guénon afirma que a gênese desta crise é o afastamento progressivo do homem moderno dos fundamentos “tradicionais” de sua religião, o cristianismo sob a forma praticada na Igreja Católica. Ademais, e aqui começamos a ver a pontinha das garras da Esfinge, o escritor fala também de uma espécie de separação — absolutamente descabida a seu ver — entre Ocidente e Oriente.
Os processos que levaram à consolidação da Modernidade, para Guénon, resultaram num afastamento do homem ocidental disto que o autor chama de “Tradição”, elemento que, inclusive, havia possibilitado se não uma união entre Ocidente e Oriente, pelo menos um grau significativo de aproximação entre ambos os hemisférios — culturais e religiosos antes de geográficos. As consequências mais evidentes da crise do mundo moderno, que poderia, sem prejuízo de compreensão, ser escrita como “A Crise do Ocidente”, são, por exemplo, o Racionalismo e o Materialismo. Pois, como o autor explica, levaram o homem ocidental a um apego perigoso ao mundo material — como se ele não pudesse mais admitir que o transcendente também compõe a realidade. Daí, dentre outros elementos, a estranheza com a qual os ocidentais modernos veem a prática da meditação e o cultivo da vida interior — absolutamente comuns no Oriente não ocidentalizado.
Contudo — a Esfinge, cada vez mais desinibida, mostra as suas garras –, a crise e as suas consequências aparentemente têm como origem não um mero afastamento das verdades da religião cristã, mas a perda da percepção de uma unidade superior que é a gênese mesma não só da religião cristã, mas de todas as religiões. Bem, pelo menos das principais — Guénon podia ser vegetariano, mas vegano já seria demais. A percepção desta “unidade transcendental das religiões”, para o autor, subsiste ainda no Oriente (e nas religiões orientais), aonde o homem ocidental deveria ir buscar sabedoria e iluminação para a sua profunda crise existencial. O escritor francês, com a sua estilística deliciosa, está escondendo algo.
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Interessante. Vivemos num mundo de bolhas. Cada uma contendo suas verdades e soluções. Pensarei sobre.
Ótimo artigo.