VITOR MARCOLIN | Da Grécia Antiga aos formigueiros do jardim

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Tirania e manipulação dubladas em versão brasileira

Eu estava na varanda quando ouvi a explicação sobre as formigas. A tevê estava ligada na sala, onde algumas pessoas entretinham-se com a programação. Eu podia ouvir o dublador do popular programa sobre animais na rede de tevê aberta a narrar, com entusiasmo, a dinâmica da vida dos insetos sob a hierarquia do formigueiro. Difícil era discernir se a inspiração do naturalista era verdadeira ou se todo aquele arrebatamento pelas formigas provinha do talento do dublador. Não sei. 

A certa altura, a aula de mirmecologia descambou para uma análise sociológica cujo mote era uma analogia à organização político-social da antiga Atenas. O narrador do documentário, a fim de mostrar para o público o quão organizadas eram as formigas, passou a compará-las à sociedade grega na qual surgira a Democracia. O mirmecologista, que detinha sólidos conhecimentos de história, deixou claro para o ouvinte que, na Antiguidade Clássica, a Democracia era uma característica exclusiva de Atenas; as outras pólis da península grega, como Esparta, governavam-se como melhor lhes apetecia.  

No formigueiro em questão, como explicava o especialista estrangeiro na voz empolgada do dublador, vigorava o mais puro regime democrático. Mas não só. Vigorava um regime verdadeiramente socialista. Nesta conjuntura, as formigas operárias, protegidas pelos soldados, distribuíam o alimento coletado no ambiente entorno à colônia da forma mais igualitária jamais vista no reino animal. O dublador era hábil em transmitir a emoção que só os legítimos amantes da mirmecologia, a ciência que estuda as formigas, podem sentir ao falar sobre os seus insetos preferidos.  

Depois de uma longa explicação sobre o sofisticado sistema de armazenamento dos alimentos no interior do formigueiro, o especialista fez uma pequena pausa. Era um dia de intenso calor. Não era possível distinguir com precisão o sotaque do mirmecologista, pois o dublador brasileiro fazia um excelente trabalho; mas, a julgar pelos jeitos e trejeitos do homem, acho que ele era britânico. Um cientista britânico fascinado por formigas. Com um movimento bastante natural, o homem enxugou a fronte e ajeitou o chapéu. 

Ao voltar à aula sobre os insetos, o professor trouxe novamente a analogia com as cidades-Estados da Antiguidade. Passa a dizer que o formigueiro está sob uma peculiar organização política. Assim como Atenas que, dentre as pólis gregas era a única na qual vigorava a Democracia, neste formigueiro havia um regime de administração que o singularizava dentre todas as outras moradas de formigas daquele jardim. Ele disse: “Vou ter de fazer um sacrifício para revelar a verdade sobre elas [as formigas]”.  

Com uma pá de jardim, o mirmecologista escava o formigueiro até chegar à câmara da rainha, criatura horrenda que em nada lembra uma formiga. O especialista pede a atenção do expectador ao apontar, com uma longa pinça, para um estranhíssimo inseto preso ao corpo grotesco da formiga mãe. Trata-se do macho responsável por fecundá-la e assim repor os membros da colônia. Operárias, soldados, farejadoras, construtoras, as responsáveis pelo cuidado com os ovos e as que têm o dever de zelar pelos alimentos conservados nas câmaras do formigueiro, todas são frutos da peculiar cooperação entre a rainha e o seu macho. 

Meio desconcertado, o cientista amante das formigas descobre que cometera uma gafe ao valer-se da política de Atenas para a sua analogia com o formigueiro. “Na verdade”, disse ele, “observando melhor o comportamento do macho, devo dizer que este formigueiro parece mais Esparta, ou qualquer outra pólis grega, do que Atenas”. E mais uma vez o exímio dublador brasileiro foi hábil em captar a mudança de humor do mirmecologista. A narrativa ganhou um tom melancólico. “Vejam o macho: ele tem uma forma peculiar, é incrivelmente menor do que a fêmea; no entanto, ele a domina, alimenta-se da comida que rouba dela. Com a sua careca evidente e o corpo coberto por uma escama preta, é o macho, não a rainha, que dá as ordens no formigueiro. A democracia aqui é só fachada. Se compararmos o jardim à Grécia da Antiguidade, e, portanto, os formigueiros às diversas pólis, veremos que nenhuma satisfaz as condições da tirania deste macho opressor”, concluiu o especialista em formigas.  

Depois de outra pequena pausa, o cientista começou a explicar o modus operandi da manipulação que o macho exerce sobre toda a hierarquia do formigueiro, mas o programa foi abruptamente interrompido. Tornei à varanda de onde passei a ouvir, muito a contragosto, o início da propaganda eleitoral obrigatória.  

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