VITOR MARCOLIN | A malícia do ‘Esfinge’

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Outro breve comentário sobre René Guénon

René Guénon, cujo codinome é “Esfinge”, compenetrado no seu propósito de convencer — ou talvez ludibriar — o leitor ocidental a criar repulsa pelo seu próprio mundo — corretamente descrito, mutatis mutandis, como “decadente”, “degenerado” e “confuso” pelo próprio autor — diz algumas verdades. Não é porque o sujeito faz das tripas coração a fim de persuadir o seu leitor de que o mundo ocidental encontra-se irremediavelmente perdido que ele, durante o trabalho de convencimento, não faça assertivas; aliás, lançar mão de pitadas de verdades com o objetivo de levar o leitor a tomar tais ou quais decisões é condição sine qua non para o sucesso de todo o esforço persuasivo. A mentira não pode convencer ninguém, daí a simbologia da via que conduz à danação eterna ser, na tradição ocidental, o caminho “largo”, “aprazível”, “delicioso” — em franco contraste com o caminho estreito da verdade que conduz à vida eterna.  

Concentremo-nos, no entanto, nessas pitadas de verdades que, ao criticar o Ocidente, Guénon faz referência. Em A Crise do Mundo Moderno, o autor apresenta um panorama dos problemas que se tornaram inerentes à própria configuração da sociedade na qual vivemos. Já naquela época — o livro foi publicado em 1927 —, Guénon pôde extrair um Raio-X das principais causas da realidade enunciada no título do seu livro. A gênese da crise, se é que entendi o livro nesta primeira leitura, é o afastamento das verdades metafísicas que sustentam a religião, isto é, o fundamento mesmo da disposição religiosa — tal qual ainda é, segundo o autor, praticada no Oriente. E esta perda de compreensão foi, no Ocidente, concomitante com o fim da Idade Média. Aliás, este período da história, inclusive, é bastante louvado pelo autor em função da lucidez, da coerência com as verdades metafísicas mantida pelo praticante da religião — o Catolicismo.  

As consequências da crise — religiosa — são várias. O escritor explica que, a fim de preencher o vácuo deixado pela perda das verdades metafísicas (ou doutrinas metafísicas), o homem ocidental passou a superestimar um elemento que, na hierarquia natural da disposição religiosa, tem valor secundário: a moral. E aqui Guénon tece as mais lúcidas críticas à revolução protestante deflagrada no início do século XVI. Note-se que o autor segue a historiografia clássica que, depois do fim do medievo, elenca as seguintes conjunturas históricas: Renascimento, Reforma Protestante e Revolução Francesa. Contudo, contrariamente à narrativa historiográfica que sustenta que o nascimento efetivo da Era Moderna deu-se com a “queda da Bastilha”, no final do século XVIII, Guénon identifica o nascimento da nossa época quatro séculos antes que Luís XVI perdesse a cabeça na guilhotina: no século XIV, o fim da Idade Média.  

A revolta contra a estrutura tradicional da religião ocidental deflagrada na Alemanha em 1517 — e que encontrou os seus principais adeptos nos países do norte da Europa — representa, para o autor, um importante golpe contra a dinâmica natural, por assim dizer, da disposição religiosa do homem ocidental. E aqui as críticas de Guénon contra o Protestantismo não apresentam nenhuma novidade senão a alocação do fenômeno religioso e cultural sob a perspectiva da perda disto que ele chama de doutrina metafísica. Com efeito, uma das principais causas — uma causa secundária — da crise é o afastamento da única instituição digna — do ponto de vista intelectual sobretudo — de interpretar os textos sagrados da religião. O Sola Scriptura de Lutero deu o aval que faltava ao homem já influenciado pela corrente filosófica do Humanismo (o Materialismo viria pouco depois, com Descartes), para que ele pudesse divergir sem culpa sobre o destino da sua própria alma — e, a reboque, trazer uma plêiade de novas interpretações dos textos sagrados.  

Evidentemente, os católicos também estão sob os efeitos da crise; e, como explica Guénon, se eles não têm o prejuízo da multiplicidade de interpretações — que invariavelmente prende o sujeito no moralismo —, padecem de uma afetação meramente estética da religião. A seu modo são também moralistas. E aqui, pelo que me parece, está o maior erro dos perenialistas: sutilmente, Guénon afirma que o Ocidente só terá jeito quando os ocidentais voltarem-se à prática da religião tradicional, o catolicismo romano. Daí que os ávidos leitores do escritor francês (especialmente os jovens) abracem, sem praticamente nenhuma objeção, a solução proposta pela Esfinge. Porém, Guénon não está dizendo que a mera prática catequética da Fé Católica, tal qual ensinada pelos Evangelhos, Santos e Doutores da Igreja, trará a solução para a crise do mundo moderno. Não. Sem a consciência da unidade essencial do Catolicismo com as outras “formas tradicionais”, a religião é nula. 

René Guénon convida o seu leitor a buscar o conhecimento das doutrinas metafísicas, das verdades superiores da religião sem as quais o Padre Nosso não surte efeito; e sem as quais também a união entre o Ocidente malvado e decadente e o Oriente iluminado e boníssimo não pode ser restabelecida. O escritor francês acerta quando critica a dedicação exagerada com a qual o homem ocidental envolve-se com o mundo material, sem deixar um pouquinho de tempo para a porção imaterial da realidade, para a vida meditativa, a vida do espírito; mas ele conduz o seu leitor a conclusões equivocadas. Por fim, as pitadas de verdades dissolvidas em A Crise do Mundo Moderno não são suficientes para disfarçar os miasmas do veneno — nem para esconder as garras da cínica e maliciosa Esfinge.  

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