SANTO CONTO | O Tempo e a Eternidade

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Baseado em uma história contada pelo Padre Wander de Jesus Maia

Cronos estava se sentindo especialmente amargurado naquele dia. Pensava com saudades nos seus tempos de glória, quando todos acreditavam que ele regia o Universo. E agora, estava ali, naquele canto, esquecido. Um demônio velho e amargurado em cujas mentiras ninguém mais acreditava.  Não bastasse a humilhação que seu próprio filho, o ingrato e insubordinado Zeus, o fizera passar, agora aquele ser insuportável, para quem ele era incapaz de sequer olhar, cuja mera lembrança já o fazia estremecer, começava a estender seus domínios por todos os lados, inclusive para além daqueles a quem chamava de seu povo escolhido. Ele fazia-se conhecer, e quanto mais gente o conhecia, mais o panteão das velhos mitos voltava para o inferno, todos humilhados.

“Maldito Javé”, ele pensava, “ainda vai acabar com todos nós! Todos! Ainda mais com esse seu filho, esse tal de Jesus, andando por aí, pregando essas coisas todas, encantando multidões, contado toda a Verdade às pessoas, revelando tudo! Será que ele não pode deixar um lugarzinho só para nós? Senão esse planeta, uma ilhota que seja? Por que, afinal, todo mundo tem que saber a Verdade? Uma mentirinha nem vai fazer tanto mal assim! Uma mentirinha de nada, só pra gente se manter em alta um pouquinho… Mas, não! Ele quer tudo só pra si, e a gente aqui nesse inferno, literalmente!”.

Assim ele destilava seu amargor, quieto e recolhido, enquanto caraminholava umas ideias. Mais cedo, Lúcifer havia dado uma passada por ali, dissera-lhe umas coisinhas ao pé do ouvido, com aquela sua voz melíflua, e fizera-lhe umas promessas.  E o velho titã se pôs a cismar. Afinal, quem era ele? O Tempo, o Senhor de tudo, Mestre da Vida e da Morte, o Cara! “Sim”, dizia a si próprio, “eu sou o Cara! O Maioral! O Imbatível! Quem resiste a mim? Eu acabo com todos, implacável, ninguém resiste a mim! Sou eu quem leva desde os mendigos aos mais poderosos imperadores do mundo! São todos iguais perante mim! Eu mato a própria Beleza, eu sou o Senhor de todas as coisas! EU!”.

Em meio a seus delírios, tomou uma resolução havia tempos postergada: subiria ao Trono de Javé, mostraria a ele todo seu poder, e iria retomar seu lugar de direito. Respirou fundo, ergueu a cabeça e seguiu confiante às Alturas.

Lá chegando, foi ignorado por todos os Anjos, já instruídos para deixá-lo passar. A cada um com que ele cruzava, sentia-se mais e mais triunfante, seguro de seu poder irresistível (conforme lhe assegurara Lúcifer), vendo-se maravilhoso e temido por todos. Ia ser fácil! Quando se postou diante do Onipotente, empinou seu nariz, olhou-o nos olhos, apontou-lhe o indicador e, com um meio sorriso cínico, de todo o discurso que havia ensaiado só conseguiu exclamar:

– Eu sou o Tempo!

Javé, levantando-se e tornando-se imenso, gigantesco, respondeu com uma trovoada:

– E EU SOU A ETERNIDADE!

Aquilo fez o titã decaído perder o fôlego e estremecer. Baixou os olhos e, sentindo-se minúsculo, insignificante, curvou-se. Então o ar tornou-se-lhe tóxico, irrespirável. Estava prestes a desmaiar quando sentiu uma pressão sobre a nunca. Era um Arcanjo que o levantava com nojo e o arremessava de volta ao inferno.

Nas profundezas, humilhado, pôs-se a amaldiçoar Lúcifer, o velho traíra, fanfarrão idiota. Em seu trono, o diabo ria de sua pequena mesquinharia e, ao mesmo tempo, urrava de ódio: naquele momento, Lázaro ressuscitava.


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1 COMENTÁRIO

  1. Cronos empinou seu nariz, olhou-o nos olhos, apontou-lhe o indicador e, com um meio sorriso cínico, de todo o discurso que havia ensaiado só conseguiu exclamar:

    – Eu sou o Tempo!

    Javé, levantando-se e tornando-se imenso, gigantesco, respondeu com uma trovoada:

    – E EU SOU A ETERNIDADE!

    Que Deus me livre do erro e da ilusão de me colocar acima do tempo e muito menos acima de Javé!

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