SANTO CONTO | O presente

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Baseado em uma história de São Nicolau de Mira

I – O sopro do mal

Nobre apenas na linhagem, Simplício era um sujeito decadente. Beberrão e viciado em jogatina, arruinara toda a herança de seus antepassados, cujo único legado vivo, além do título, e que se mantinha enraizado em seu coração, eram as saudade de algo na verdade nunca vivido por ele, o saudosismo idealizado dos “bons e velhos tempos do paganismo”. Sua devota esposa, que havia morrido de desgosto e tristeza, olhava-o do Céu com piedade, e rogava por ele o tempo todo, principalmente por causa das três filhas que deixara, e que, assim como ela, já sofriam com o desleixo e a vida desregrada do pai.

As três belas adolescentes, aliás, estavam em idade de casar, e cada qual já tinha lá sua afeições eleitas, nobres rapazes como elas, mas não falidos. E aí se davam os impedimentos para os casórios: a falta de dote, além da péssima fama de Simplício. As meninas padeciam de pobreza, vergonha e tristeza, mas iam levando a vida com a piedade ensinada pela mãe, sempre orando pela conversão do pai, que muito amavam apesar de tudo, e fiadas na promessa de uma vida melhor, se não neste mundo, no outro.

O amor das filhas, no entanto, não era devidamente correspondido por ele. Simplício, vendo-se na total ruína financeira e sem perspectivas de casamentos interessantes que lhe pudessem gerar alguma boa pensão, havia algum tempo que considerava uma ideia que um demônio lhe soprara num fim de tarde. Um pensamento que de início lhe causara escândalo e repulsa; depois, uma aversão mais amena; e que, enfim, foi se transmutando em aceitação, até virar decisão: mandaria as filhas à casa de Teodora, famosa alcoviteira e sua antiga favorita. Já havia sondado a cafetã, e tratara com ela, além de um belo pagamento à vista, uma renda fixa por tempo indeterminado para si em troca da total “disponibilidade” das meninas no estabelecimento.

A coisa toda já estava acertada, só protelada por um fiozinho de honra na consciência de Simplício. Mesmo estando resoluto, ainda se envergonhava da decisão, e adiava a hora fatal da entrega das filhas o quanto podia. Além disso, não sabia como proceder: melhor deixar tudo a cargo de Teodora, como ela mesma sugerira? Ou tomaria ele próprio as rédeas da situação, e levaria pessoalmente as moças ao prostíbulo? De qualquer modo, seria ocasião de choro, gritos, escândalo. Fosse como fosse, aquele frouxo lume de bondade em seu coração, e sua própria moleza em se decidir logo, trabalhavam para o bem daquela família…

II – A “fofoca do bem”

Diz um ditado que há males que vêm para o bem. Na verdade, é que Deus muitas vezes deixa o diabo jogar mais à vontade e o faz achar que está ganhando. No momento apropriado, Ele vai lá e puxa o tapete do espertalhão. É assim desde o inícios dos tempos, e foi assim neste caso em particular, do drama de Simplício e suas filhas.

Cabe aqui revelar um novo – e decisivo – personagem da trama, Padre Nicolau, vizinho da desafortunada família. O velho padre, que tinha grande apreço pela falecia esposa de Simplício, assim como por suas filhas, nutria um especial desprezo pelo vizinho beberrão e jogador, ao mesmo tempo em que se apiedava daquela alma tão perdida. Repreendia o vizinho publicamente, com duras e justas admoestações, mas rezava por ele todos os dias.

Eis que um dia, então, na saída de uma Missa, Padre Nicolau inadvertidamente escutou a fofocaria das más beatas, e se alarmou. Ficou sabendo dos planos de Simplício para entregar as filhas ao prostíbulo, e não se conteve, puxou pra si uma das fofoqueiras e pediu detalhes. A velha interpelada, satisfeita de poder fuxicar com o padre bravo à vontade, revelou cada pormenor do que sabia de ouvir falar.  De tudo o que fora dito, ao padre importou uma coisa só: o endereço do tal prostíbulo, para onde ele foi imediatamente confirmar a história…

III – Três sacos de ouro e um tapa na cara

Naquela noite, Padre Nicolau não conseguia conciliar o sono. A Cafetã, pega de surpresa pela presença daquele padre, havia lhe confirmado toda a trama e, envergonhada, prometera a ele que sob hipótese alguma aceitaria qualquer um das filhas de Simplício em sua casa. E ainda deu ao padre um gordo donativo, em nome da Virgem Santíssima. O velho fez-lhe uma longa admoestação, e por fim olhou-a com piedade:

– Não é assim que resgatas tua alma, mulher! Melhor mesmo é que nesta casa não se aceitasse mais ninguém, a não ser Cristo! Segue o rumo correto, ou segue o do inferno!

Diante da cara envergonhada e cabisbaixa da velha alcoviteira, e percebendo que dali não tiraria frutos naquele momento, o padre se despediu e saiu do prostíbulo fazendo o Sinal da Cruz, rezando por Teodora e suas moças, e por todos os frequentadores do lugar.

E insone rezava por tantas almas perdidas quando, já alta madrugada, tomou um resolução. Levantou-se de um pulo, foi ao cofre onde guardava o dinheiro para as esmolas anônimas que fazia, separou três sacos pesados com moedas de ouro, amarrou em cada saco um papiro com o nome de cada uma das filhas de Simplício, encapuzou-se com um manto vermelho e saiu às escondidas rumo à casa do vizinho.

Entrou sem dificuldades por uma janela lateral. Era um palacete antigo, mas degradado e sem segurança. Deixou os três sacos de ouro ao pé da lareira na sala principal, fez uma oração e foi saindo de mansinho, como entrara. No entanto, a caminho da janela, esbarrou em alguma coisa, atrapalhou-se, levou um tombo, derrubou sabe-se lá o quê no meio da escuridão. Saiu apressado. Enquanto corria manquitolando pelo jardim, foi alcançado por Simplício, que havia acordado com o barulho na sala e vinha com um porrete em mãos. Segurou o velho pelo capuz, puxou-o, fê-lo cair sentado, e ia acertar-lhe uma cacetada quando o reconheceu:

– Padre Nicolau! Mas o que…

Não teve tempo de continuar. O velho aprumou-se num pulo, agarrou-o pelo colarinho e meteu-lhe um tapa na cara:

– Agora escuta bem, mandrião, – o padre bufava de falta de ar e raiva – eu já sei de todas as tuas impiedades, dos teus planos sórdidos para tuas próprias filhas! Isso não vai mais acontecer, está entendendo? Tu vais casar as três conforme a vontade de Deus, com os dotes que Ele mandou e estão em tua lareira! E não vais tocar numa moeda daquele dinheiro, entendeste?

Simplício, trêmulo, olhava apavorado para o velho, que o segurava com uma força descomunal, e concordava com tudo. Nicolau então o arremessou para trás e apontou-lhe o dedo:

– Outra coisa: se contares a alguém que estive aqui hoje, eu volto aqui e te dou uma surra! Estamos entendidos?

Deu as costas e saiu sem nem escutar o “Sim, senhor” de Simplício, mas quando chegava em casa, sentindo que algo se operava na alma do vizinho, soltou uma gargalhada alegre que foi escutada em muitas casas…

IV – Vida nova

Tempos depois, as três meninas casaram-se todas numa mesma cerimônia, celebrada pelo então Bispo Nicolau. Durante os festejos, Simplício, que vendera o antigo palacete da família e comprara um pequeno sítio que administrava com o suor de cada dia, puxou o velho de lado para agradecer-lhe pelo presente.

– Que presente? – O Bispo se fazia de desentendido e ao mesmo tempo o fitava com um olhar ameaçador – Tu bem sabes que aquelas moedas…

– Não é isso, não, Excelência – Simplício, já com jeitos de matuto, se atrapalhava, envergonhado; já havia espalhado para metade da cidade a história de um velho alegre encapuzado que distribuía presentes em nome de Nosso Senhor, e essa metade se encarregara de espalhar a história para a outra metade, e o conto corria longe, com seus acréscimos e modificações… – É de outro presente que eu falo. Eu venho agradecer ao senhor pela minha conversão, pela salvação da minha alma e…

Não terminou de falar. Foi sufocado por um abraço do Bispo, e todos no casamento escutaram a gargalhada efusiva de Dom Nicolau.


5 COMENTÁRIOS

  1. Em complemento ao meu comentário acima, desejo agradecer por tê-lo compartilhado conosco e em tempo desejo feliz Natal aos integrantes da Revista Esmeril e aos seus assinantes. Que Jesus os abençoe, ilumine e proteja imensamente.

  2. Caro Sr. Leônidas, desconhecia tal conto e ao lê-lo fiquei simplesmente feliz, talvez pela trama bem escrita ou pelo seu final feliz, ainda que este seja o arremate daquela. A vida nossa de todos os dias não é um conto e tão pouco se resume em plena felicidade, ainda que seja, segundo Aristóteles, o fim último do homem,

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