SANTO CONTO | Carta à Mãe

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Mãe querida, por muito tempo fugi de Ti e de Teu filho, mas não mais. Conheces bem todos os meus pecados e misérias, mas é necessária, Mãe, esta última carta, de despedida do mundo, aquele mundo meu antigo, para que enfim me entregue a uma vida só a Nosso Senhor e a Ti. É necessário rememorar mais esta vez, Mãe.

Tu bem sabes, eu era uma entre tantas ovelhas desgarradas. Batizado, crismado, mas há muito tempo longe da Santa Igreja, longe de casa, apartado dos Pais. Entregue ao mundo, e satisfeito naquela condição. Ou nem tanto. Porque vivia buscando, aqui, ali e acolá, algo que me preenchesse, que me tornasse pleno, como só Teu Filho é capaz. “Borboleta espiritual”, como diria o Padre Denis, seguindo toda nova moda neopagã que aparecesse. E foi seguindo uma dessas modas que tudo aconteceu…

Encantado com os relatos e ensinamentos entusiasmados de uma colega de trabalho por quem eu alimentava lúbricas intenções, aderi à seita dos Filhos de Pachamama. Basicamente dedicávamo-nos a adorar aquela a quem chamávamos de Mãe Terra, e que pensávamos ser nossa mãe querida, deusa provedora de toda a vida no planeta. Cruel engano. Além de todo soberbo fetiche intelectual envolto naquele paganismo chique, para a maioria a coisa toda acabava voltando-se para um único fim: sexo. “Livre”, desregrado, desenfreado e sem culpa. A cada reunião, a cada festival, a cada ritual em que comíamos e bebíamos desordenadamente, em que tomávamos os alucinógenos que nos colocavam “em comunhão com Pachamama”, e dançávamos feito os bárbaros mais sórdidos, depois que oferecíamos àquela falsa mãe doces e bebidas, e flores, e alguns tantos pobres animais que lhe sacrificávamos, tudo sempre terminava em sexo.

Naquela época eu “satisfazia” todos os desejos e fantasias possíveis, mas sempre alimentava mais e mais, e nunca era o suficiente. E percebi que acabei ficando mau, quer dizer, pior. Muito pior do que sempre havia sido. Eu vivia para satisfazer esses desejos insaciáveis, e toda a adoração à “deusa” acabou se reduzindo numa ansiedade por mais orgias. Perdão, Mãe. Perdão.

Aí, Mãe, Tu lembras, estavas lá comigo e meu Anjo, aconteceu aquele festival, o maior de todos, dedicado à “mãe” diabólica. Durou dias, mas, para mim, foi bem curto, pois tudo aconteceu logo na primeira noite. Houve a música, houve as danças, houve a bebedeira, houve os sacrifícios e oferendas, e então os alucinógenos, e mais danças. E houve também o sexo, mas não para mim. Em algum momento, eu apaguei. E os que dormiam antes da hora eram também oferecidos às entranhas de Pachamama, enterrados vivos para serem comidos por ela. E foi assim comigo.

Mas meu Anjo me fez acordar com uma golfada de vômito que quase me matou engasgado ali memo. No entanto, era vontade de Deus que eu me salvasse, então me esforcei para ajudá-Lo. Estava tudo escuro, e eu sufocava, tateando em volta, assustado. Confuso, comecei a me debater, gritei em desespero, mas nada. Parei um pouco. E alguma coisa me fez lembrar do abuelito, quando eu era pequeno, e ele me ensinou as orações todas, que decorei de má vontade, aborrecido. Mas ficaram gravadas. E a voz do abuelito me dizia para rezar, e rezei. Ao Anjo e à Senhora. E então, me veio a luz, e usei a cabeça, literalmente.

Quebrei as madeiras com cabeçadas, e aquilo abriu uma brecha. E o resto se passou rápido demais, mas foi pela Graça de Teu Filho que escapei, Mãe. Foi só pela Graça que consegui, usando todos os membros e todas as forças, me cuspir daquele buraco sem morrer engolindo terra. Mas, se na memória os eventos são confusos, estão aqui no meu rosto e nos nós de minhas mãos as marcas que vão me lembrar deles para o resto desta vida. Estas cicatrizes, hoje, ofereço por todas as chagas e lacerações que Teu Filho suportou por mim, Mãe.

Saí das entranhas de Pachamama cuspindo terra, com terra nos olhos, quase cego. Andei quilômetros como um zumbi, trôpego, até chegar a um povoado onde fui procurar a polícia. Ouviram sem piedade minha história, e me trataram como um bêbado vagabundo – neste ponto, não estavam errados. Escarneceram de mim, puseram-me debaixo de um jato d’água gelado e me expulsaram de lá a pontapés, às gargalhadas. Pois é, Mãe. Que duro caminho de volta…

Fui andando sem rumo, rezando conforme o abuelito me ensinara, até que não pude mais. Desabei não sei onde, aos prantos, e novamente apaguei. Acordei numa cama, todo limpo, e cercado pelos monges que a Senhora mandou para me resgatar. Contei-lhes toda a minha história, de toda minha miserável vida até o que rememoro aqui.

E o resto, já bem conheces, Mãe. Deixei tudo para trás naquele dia mesmo, não voltei para buscar nada. Trilhei com estes meus queridos Irmãos o caminho que me preparou para este dia. E hoje, enfim, torno-me um deles, faço meus votos perpétuos. Espero poder honrar ainda mais a Teu Filho e a Ti, e que eu possa trazer algum alívio de todas as dores que já causei aos Vossos Corações.

É hora, Mãezinha. Irmão João está chamando. Roga por mim.

Sempre teu,

Manoelito


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