SANTO CONTO | As últimas seis

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Baseado no último ato da Serva de Deus Ambrósia Sabatovych

Contam os antigos da cidade que aquele foi o primeiro incêndio no então povoado de Cruz Machado, mas ninguém sabe dizer como ou onde as chamas começaram. Fato é que, quando as Irmãs se deram conta, o fogaréu já ia engolindo o orfanato, e foi um pandemônio de freiras e meninas gritando e correndo pra todo lado, a notícia voando pela lentidão do vilarejo, as pessoas chegando com baldes que não davam conta nem das chamas externas.

Irmã Ambrósia, que estava na Capela quando começou a gritaria, foi inspecionando todos os cômodos, cada canto e cada frincha, driblando as labaredas cada vez maiores, a procura de suas pequenas. Ia guiada pelos gritos de socorro, achando uma aqui, outra ali, formando grupos e levando todas para fora. Quando saiu uma última vez, exausta, bateu o olho na frente do orfanato: homens e mulheres chegando com baldes, crianças chorando, algumas Irmãs desmaiadas ali na rua, outras ainda gritando em desespero, e outras chorando com as meninas.

Contou três vezes as meninas e as Irmãs com dificuldade, os olhos irritados pela fumaça, a respiração custosa, e a conta nunca batia, cada vez era um resultado, estava difícil pensar. Teve uma crise de tosse, cuspiu sangue (uma velha doença voltando a assediá-la), as pernas bambearam e ela tombou ralando os joelhos. Duas mulheres tentaram levantá-la, preferiu continuar como estava. Mole, ergueu a cabeça e tentou fazer a conta outra vez, não conseguiu. Fechou os olhos e começou a rezar em silêncio, com a sensação de que iria desfalecer a qualquer momento, os membros todos fraquejando enquanto escutava o crepitar das chamas que iam consumindo o casarão, os choros, o vozerio, a gritaria em torno e as baldadas inúteis de água.

Enquanto rezava, tentava tranquilizar-se, lembrando que havia inspecionado cada canto do casarão, e repassava na memória o filme com as meninas que havia resgatado ou que vira outas Irmãs salvando. Parecia que não faltava mais ninguém, mas tinha a sensação de que não, de que tinha criança faltando. Então, parece que só ela escutou uns gritinhos e choros vindo lá dos fundos, e de repente a conta se acertou:

– Faltam seis!

 Levantou de um salto e correu em direção à Capela, de onde saíra, e único lugar que não inspecionara novamente. Seis das meninas menores haviam corrido para lá logo no início do incêndio, e lá ficaram, apavoradas. Quando Irmã Ambrósia chegou, passando pelo fogo que já tomava a porta de entrada, achou as seis encolhidas atrás do altar, uma já desmaiada. Pegou a pequena colo e deu as instruções para as outras:

– Filhinhas, façam tudo o que eu fizer. Corram e passem voando pelo fogo da porta, e depois todo mundo atrás de mim. Confiem em Nosso Senhor! Vamos!

E foram. Cruzaram incólumes o fogaréu e, segundos depois, já não existia mais a Capela. Passaram como foguetes pelos corredores, escapando de todos os perigos. Mas, quando chegaram na saída, o teto desabou e foram todas atingidas pelo madeirame em brasas. Irmã Ambrósia ainda chegou a despertar uns segundos, escutou os gritos vindos lá de fora, os homens se esforçando para tentar entrar. Tossiu sentido gosto de sangue uma última vez e começou seu último Ave Maria, que não terminou neste mundo. Quando abriu os olhos, a primeira pessoa que viu foi a Mãe do Céu, com as seis pequenas em volta d’Ela.


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