SANTO CONTO | Aquele domingo

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

I. O silêncio inescrutável

Olhos vermelhos e inchados de onde não era possível cair mais uma lágrima sequer, Maria quedava-se muda entre os discípulos de seu Filho. Tudo ali era sombra e silêncio, corações doloridos e destroçados, mas nenhum como o d’Ela. Naquele coração a dor ardia viva, e o queimava como se o trespassasse com espadas de fogo, a fustigá-lo afiadas e inclementes. Assaltavam-lhe as lembranças das aflições por que Ele passara, e Ela podia sentir cada uma delas: a flagelação, as costas descarnadas pelo látego; as pernas e os ombros doridos sob o peso do madeiro com todos os pecados do mundo; o rosto arrebentado e desfigurado pela tortura e as quedas no chão duro, pedregoso; os espinhos na pele e no crânio, implacáveis; a perfuração cruenta nas mãos e nos pés pelos cravos; o corpo amarrado e soerguido, sufocado com o fardo dos pecados de todos os séculos; a sede e gosto de sangue na boca; a falta de ar; a dor agudíssima em cada fibra de cada músculo, em cada osso. Tudo isso Ela sentia no coração, na carne, na alma. E, ainda, havia aquela dor que só Ela, humanamente, poderia sentir: a separação, ainda que temporária, do Filho tão amado, carne de sua carne, seu Menino que era o próprio Deus, e que fora tratado como o pior dos criminosos. 

No entanto, naquele coração, e só nele, também brilhava uma luz: a confiança em Deus e a certeza da vitória. Certeza de que Ele já havia ressuscitado. Com aquele espírito forte e convicto em meio à quase total escuridão daquela madrugada, Ela mantinha de pé a Igreja, que então contava com seu único e solitário membro. Por isso mesmo, naqueles seus olhos exaustos de tanto chorar havia uma serenidade profunda. Por isso, aquele seu silêncio era inescrutável, e elevava-se acima de todos os outros ali reunidos. E também por isso, quando as outras três Marias a convidaram para acompanhá-las até o Sepulcro, Ela nada respondeu e continuou ali, muda, quieta, insondável.

II. A pedra removida

Amanhecia. Enquanto seguiam para o Sepulcro, duas das Marias sussurravam entre si:

– Viste os olhos dela? Seu rosto?

– Sim. Quanta tristeza. Quanta dor. E quanta…

– Calma? – atalhou a terceira. Foi o que mais me impressionou. Quanta tranquilidade naquele olhar, de uma mãe que recebeu em suas mãos o filho morto, e naquele estado, depois de todas aquelas torturas! Eu vos confesso, irmãs, que por mais de uma vez tentei consolá-la, confortá-la, mas sempre que me aproximava e a olhava nos olhos, uma confusão me tomava de assalto e eu tinha que me afastar! Meu Deus que estais no Céu, o que será daquela mãe? O que será daquela alma angustiada, atormentada, enlouquecida talvez? Senhor, tende misericórdia de nós! Mas, olhem, silêncio agora, que estamos chegando, e há guardas…

Não pôde terminar a frase. Pararam as três a uns tantos metros do local. Dali, podiam ver os sentinelas caídos, em sono profundo, pesado, e a pedra removida. Ficaram lívidas, sentiram todo um pavor que lhes subia pela espinha e fazia os membros tremerem. Foram avançando devagar, passo a passo, receosas, com Madalena à frente. Quando chegaram perto e viram que os guardas não iriam mesmo acordar – era como se houvessem bebido a noite toda –, tranquilizaram-se. Então, de dentro do Sepulcro viram sair um jovem com roupas brancas, cuja voz jamais esqueceriam:

Por que buscais entre os mortos o que está vivo? Ele não está aqui, ressuscitou. Lembrai-vos do que Ele vos disse quando estava na Galileia: Importa que o Filho do homem seja entregue nas mãos de homens pecadores, seja crucificado, ressuscite ao terceiro dia.” 

A essas palavras, o coração de Madalena encheu-se de alegria, de êxtase. Sua alma incendiou-se. Deixando cair por terra os potes com aromas que trazia e, enquanto olhava com o rabo do olho a mortalha vazia dentro do Sepulcro, saiu correndo, alegre, efusiva, a anunciar que Ele havia ressuscitado.

III. Segunda ida ao túmulo

Ninguém acreditava em Madalena. A todos os que ela anunciava a Ressurreição, respondiam-lhe com repreensão, censura, ou consolo. Os mais piedosos condoíam-se dela e julgavam que delirava por causa do trauma. Entre eles, Pedro. Quando o encontrou, junto com João, e lhes anunciou a Boa Nova, o homem zangou-se, mas teve pena da jovem. Tentou acalmá-la, fazê-la voltar a si, mas foi em vão. Ela já corria para espalhar o anúncio aos demais discípulos.

O pescador ficou a olhá-la enquanto se afastava e sumia rapidamente, confiante e cheia de alegria, e chegou e pensar: “Será?”  Então olhou para o outro lado e viu que João também corria, rumo ao Sepulcro. Enfezado, pôs-se a correr para tentar alcançar o rapaz.

Quando João chegou ao local, já não havia ali os guardas entorpecidos, nem o rapaz de branco de que Madalena falara. Apenas a pedra removida. Olhou para trás e viu Pedro que vinha ao longe, bufando, e esperou, um tanto envergonhado por ter deixado para trás o Apóstolo mais velho. Ficou na porta esperando, e só entrou no Sepulcro depois do outro, que passou por ele com um olhar ranzinza.

Lá dentro, apenas os lençóis vazios, que João pegou com cuidado e reverência. No tecido, o corpo de Jesus gravado, como que impresso. O jovem fixou seus olhos no local onde estava gravada a face do Mestre. Então, seus olhos brilharam e seu coração também se incendiou. Assim como Madalena, ele saiu correndo com a certeza da Ressurreição.

Pedro ainda ficou ali dentro, parado, estático, olhos embaciados. Não tardou o choro. Lembrava-se da sua traição, dias antes, da covardia que o fez abandonar o Mestre. Aos prantos, recolheu os lençóis, dobrou-os com cuidado e saiu do Sepulcro cabisbaixo, pesado, o coração destruído, o espírito estraçalhado. No meio do caminho, no entanto, estacou maravilhado diante das vestes resplandecentes que o fizeram bradar: “Senhor!”

IV. O convidado

Entre os piedosos discípulos que julgavam louca a esfuziante Madalena estavam dois homens vindos da aldeia de Emaús, não muito longe dali. Voltavam para casa e iam caminhando tristes, sem vontade, mãos para trás e olhos no chão, conversando sobre os fatos recentes e o estado da pobre mulher. Estaria ela novamente tomada por demônios? Foi quando se aproximou deles um homem que os foi acompanhando, quieto, até que lhes perguntou:

Que conversas são essas que ides tendo pelo caminho, e por que estais tristes?

Os dois homens se entreolharam, e em seus olhares lia-se a pena que tiveram do pobre ignorante. Um deles, chamado Cléofas, respondeu:

Só tu és forasteiro em Jerusalém, e não sabes o que tem se passado estes dias? Acaso não sabes de Jesus Nazareno, que foi um profeta, poderoso em obra e palavras, diante de Deus e de todo o povo? E de que maneira os nossos príncipes dos sacerdotes e os nossos magistrados o entregaram para ser condenado à morte, e o crucificaram? Ora nós esperávamos que ele fosse o que havia de resgatar Israel; depois de tudo isto, é já hoje o terceiro dia, depois que estas coisas se sucederam…

O homem escutou-o terminar suas lamúrias, atento, e então falou aos dois:

Ó estultos e tardos de coração para crer tudo o que anunciaram os profetas! Porventura não era necessário que o Cristo padecesse tais coisas, para entrar na sua glória?

Desta vez, os dois viajantes se olharam espantados, como que indagando-se um ao outro sobre o que o estranho falava, evocando todos os profetas desde Moisés e lhes explicando o que haviam dito as Escrituras. E, ainda que eles não compreendessem muita coisa, ou nada, seus corações se aqueciam conforme o homem falava, e eles se sentiam mais seguros. Quando chegaram perto de sua aldeia, convidaram o homem enigmático para jantar e se hospedar com eles, pois o dia já declinava.

À mesa, o estranho então abençoou o pão que iriam comer partiu-o e entregou aos anfitriões. Os dois então reconheceram ali ao seu lado o próprio Jesus. Iam falar-Lhe, mas Ele desapareceu. Com os corações incendiados, levantaram-se e correram de volta a Jerusalém.

V. O ápice do dia

As notícias correram e chegaram bem rapidamente àqueles que continuavam enclausurados. Entre eles, agora, os ânimos se exaltavam. Em meio a um turbilhão de informações cruzadas, diversas acusações e defesas. Uns apontavam para a loucura ou possessão de Madalena, que aparentemente também dominara Simão Pedro e João. Outros evocavam o testemunho dos dois homens de Emaús. Discutiam, bradavam, e sobre nada entravam em acordo. Em seu canto, ainda muda, Maria orava, e se qualquer um ali olhasse para Ela naquele instante, perceberia em seu rosto um leve sorriso: era a alegria de saber que o Filho já estava chegando.

Foi então que Ele entrou, passando pela porta fechada e pondo-se no meio deles, iluminando o ambiente, em vestes brancas e com as feridas dos seus pés, mãos e lado evidenciadas, e disse:

A paz esteja convosco!

Ainda em meio à perplexidade e a confusão dos demais, Maria, diante do Filho, foi a primeira que, prostrando-se, deu graças aos Céus. Depois, um a um os outros a acompanharam.  

Aquele domingo ainda teria grandes e maravilhosas alegrias, mas, para aqueles homens e mulheres ali reunidos, foi aquele momento o ápice do dia; um dia de júbilo e de festa, de exultação e louvor, de corações e almas incendiados. Ele estava novamente no meio deles.


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