SANTO CONTO | Aprendendo a rezar

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Livremente baseado em uma história muitas vezes contada por meu avô

O menino ia levando seu burrico pelo cabresto quando sentiu um tranco que quase lhe arrancou a mão: o animal havia caído num buraco, uma voçoroca que tinha sido aberta na última estação das chuvas e ainda não tinha sido fechada. O pequeno, sempre com a cabeça nas nuvens, não havia visto o buraco onde ele mesmo quase caíra. Olhou a mão ralada pelo tranco do cabresto e olhou lá no fundo da voçoroca, viu que o burrico estava vivo, mas machucara uma pata, zurrava de dor.

Saiu correndo desesperado, gritando pelo avô. O velho picava fumo na varanda de casa e só olhou pro neto quando ele já estava ali na sua frente, esbaforido, atropelando-se nas palavras para tentar explicar a urgência:

– Vô, o Magrelo, vô! Caiu no buraco, lá na voçoroca, vô, o Magrelo caiu no buraco, ele tá machucado, vô, o Magrelo vai morrer, vô, a gente tem que…

– Espera – o velho ia enrolando o cigarro devagar. Respira. Explica direito, que não entendi foi nada, menino.

O menino repetiu, ainda mais aflito, mas conseguindo se embananar menos. Estava vermelho, arfava enquanto falava, olhava desesperado para o avô, insistia para irem logo resgatar o Magrelo, que ia acabar morrendo se não fossem logo. O velho deu uma tragada, olhou longe. Agradeceu a Deus pelo neto não ter deslizado junto pra dentro do buraco e se repreendeu por não ter cuidado daquela voçoroca, mas nem precisava: a esposa já estava ali, abraçada com o menino, consolando o pequeno e lhe dando um sermão:

– E se fosse o Toninho, Domingos? Já pensou? Ou um outro menino? Quantas vezes eu não te falei pra dar um jeito naquela barranqueira, que ia acabar dando problema? Eu te falei, não falei? Agora, olha isso!

O velho deu mais uma tragada enquanto já se levantava. Foi atrás de uma corda com a mulher ainda martelando em seus ouvidos e o menino puxando-o pela manga, dizendo para ir logo, que o Magrelo ia morrer. Foram os três até a voçoroca, só o velho calado, pensando no que seria possível fazer. Chegando lá, confirmou o que já sabia: não ia ter força para puxar o animal de lá sozinho, por mais firme que fosse a corda.

– Se fosse uns vinte anos atrás, até uma Kombi eu levantava, mas agora…

– Agora é que são elas, né, Domingos? Eu te falei, não falei? E ainda mais agora, que não tem um peão no sítio pra ajudar, como é que vai ser, hein? Eu não te falei, homem?

– Vou até a cidade. Deve ter peão lá.

– Na cidade? Uma hora dessas?

– Na vila. Não é longe. Lá na venda do Inácio deve ter…

– E se não achar ninguém? Como é que vai fazer? Olha o bicho lá embaixo, teu neto chorando aqui em cima, Domingos…

– Se não tiver, não tem. – o velho se aproximava para dar um beijo na cabeça esquentada da esposa – Aí, a gente vê o que faz. Leva ele pra casa, que aqui não tem o que fazer. E você, menino, cuida da tua vó.

Foi se afastando e não escutou o garoto insistindo com a avó que não ia a lugar nenhum, ia ficar ali esperando, que o Magrelo ia morrer. A velha olhou nos olhos vermelhos do neto, respirou e tentou se acalmar. Olhou o vulto do marido, que já ia longe, se sentiu mal por ser tão rabugenta. Pegou no bolso seu Rosário, lembrou que já tinha um tempo que estava tentando ensinar o neto a rezar, mas era difícil, o menino era resistente. Os pais faziam falta naquela hora, como faziam, ela pensou, mas era os avós quem ele tinha, então colocou o Rosário nas mãos dele e falou, olhando bem no olho

– Toninho, olha só. O Magrelo vai ficar bem. Mas não vai adiantar nada ficar aqui chorando, né? E se a gente rezar por ele? Pra tudo dar certo?

– Rezar, vó? – O menino ainda ia chorando enquanto olhava o Crucifixo na mão – Rezar vai fazer ele ficar bom? Ele não vai morrer se a gente rezar, vó?

– Se ele vai morrer ou não, Toninho, isso eu não sei. Quem sabe é Deus. Mas rezar com certeza vai fazer bem pra ele.   

– Mas, vó, Deus…

– Você já sabe as orações todas, não sabe? Eu te ensinei. – a velha ia passando a mão na cabeça do neto – Vamos, menino. Vai!

E foram. A velha fazendo o oferecimento, puxando as orações, explicando de novo cada Mistério pro menino, que pela primeira vez parecia estar levando a sério o Santo Rosário.

Enquanto isso, na vila, o velho se deparava com Seu Inácio bocejando no balcão, a venda às moscas. Nem seu companheiros de baralho estavam lá.

– Feriado fraco, homem! – Seu Inácio ia servindo uma dose de pinga para o velho amigo. – Peãozada toda na cidade grande. Estou até pensando em fechar mais cedo.

Seu Domingos explicou a situação enquanto bicava pinga. O vendeiro se adiantou:

– Bom, meu velho, se eu precisava de desculpa pra fechar, agora já tem, né? Mas, só nós dois, será que dá?

Naquele momento entrou na venda um sujeito grandalhão, roupa puída e suja, pedindo por serviço:

– Não como tem três dias, senhor. Faço aí qualquer coisa, o senhor me arrumando um prato de comida…

De cara Seu Domingos simpatizou com o homem, e os dois velhos repararam no escapulário que trazia ao pescoço. Seu Domingos perguntou:

– Teu nome, peão?

– É Antônio, senhor, às suas ordens.

 “O nome do menino”, o velho pensou satisfeito e disse:

– Tá contratado, Seu Antônio. E se for bem, de repente até já arrumou serviço fixo lá no sítio. Você coma aí um lanche, que vai precisar de força, e já vamos indo.

Seu Inácio serviu dois sanduíches e um guaraná pro homem, que apesar da fome, comia devagar, mastigando bem cada mordida, e Seu Domingos gostou mais ainda dele. Seu Inácio serviu ao novo amigo uma dose também, fechou a loja e foram-se os três à voçoroca.

Quando chegaram, a avó e o neto rezavam os últimos Mistérios Gloriosos, e o menino ia tão concentrado, visualizando cada cena da oração em sua cabeça, que só se deu conta do avô ali quando, já no Salva Rainha, viu o burrico já ali do seu lado, terminando de ser içado pelo peão:

– Magrelo!  

Tempos depois, quando Seu Antônio estava numa lida pesada com o pequeno a lhe rodear, falando sem parar e relembrando pela milésima vez de quando Nossa Senhora havia ajudado a salvar o burrico pela força da oração do Santo Rosário, e que agora ele rezava todos os dias as cento e cinquenta Ave Marias pela avó, pelo avô, por Seu Inácio, pelo Padre Vitorino e pelo Papa, pela alma do pai, pela alma da mãe, e por ele, Seu Antônio, o peão falou sem interromper o que estava fazendo:

– Mas, menino, esse burro aí te ensinou mesmo a rezar, né?


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