SANTO CONTO | A hóstia

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Último da fila para receber a Primeira Comunhão, o menino, distraído, dividia sua atenção entre os pensamentos sobre as lições da catequese e a lembrança de um mamilo que acabara de ver no generoso decote do vestido da mãe de uma das colegas, que abaixara arrumar o laço no cabelo da filha.

Lembrou de uma aula com o Padre Paulo, sobre a concupiscência e os meios de se evitar a queda quando em tentação. Rezou ao Anjo da Guarda, três Ave Marias e várias jaculatórias ensinadas pela avó, mas a carne cedia, a imagem daquele decote, e até o perfume da mãe da amiguinha, estavam fixos em seus sentidos. Seu coração descompassava, ele tremia. Lembrou que o padre havia dito para evitarem distrações e pensamentos impuros na hora da comunhão, pois aquilo entristecia Nosso Senhor, além de ser uma indignidade para com o amor d’Ele conosco. Essa palavra, “indignidade” havia ficado impressa em sua mente desde aquela aula. Havia gostado dela. Passara a enxergá-la quando presenciava alguma injustiça, ou quando examinava sua consciência, então enxergava a palavra, em letras grandes, coloridas, “indignidade”, acompanhando-o a toda parte. E sobre a imagem do decote havia agora como que um carimbo vermelho com a palavra sendo batido repetidamente: “indignidade”, “indignidade”, “indignidade”.

Então seus pensamentos voaram para outras duas lembranças: uma conversa com um amigo da escola, e outra com o avô. Reviu a cena do coleguinha dizendo que havia escutado de um primo de um amigo uma história que o padre não contara, mas que era verdade, de que quando se tem pensamentos impuros na hora da comunhão, a hóstia sangra e a gente morre afogado naquele sangue. O colega havia contado a história mais de uma vez, com versões diferentes. Numa delas, não se tratava de pensamentos impuros, mas de morder a hóstia. Nos dois casos, havia ficado impressionado, e, com aquilo na cabeça, procurara o avô, com quem gostava de se aconselhar.

Tipo bonachão e gozador, havia muito tempo o avô perdera a fé. Falava das coisas de Deus sempre de maneira indiferente e debochada, o que encantava o menino, irritava a avó. Ela, por sua vez, balanceava a situação com seu jeito piedoso e persistente, ensinando ao menino sobre a vida dos santos e tentando fazê-lo compreender o sentido das orações que ele decorava de má vontade. E, naquele fogo cruzado, a simpatia pelo avô sempre ganhava mais pontos no coração do pequeno. E foi o velho que, aquele momento, venceu outra vez.

Lembrou do avô dando aquela sua gargalhada gostosa quando ele lhe falara sobre a hóstia sangrando. Aquele riso debochado já lhe passava segurança, e as palavras firmes do velho, com ar de autoridade, completavam a lição: aquilo tudo era bobagem, a hóstia não passava de um punhado de farinha que derretia na boca, e ponto. Não passava de um símbolo, uma representação de Cristo, que havia sido um homem bom e justo, no teatro da Missa. Se ele mordesse, ou se pensasse besteira na hora da comunhão, tanto fazia. Aconselhara que o neto seguisse o preceito do padre por respeito, educação, protocolo. Mas, se ficasse muito curioso, por que não experimentar? Problema não tinha.

Naquele momento ele percebeu que o avô o olhava de um dos bancos. Seus olhares se cruzaram, e o velho deu uma piscadela. Era como se estivesse lendo seus pensamentos e estivesse ali para dizer que estava tudo bem, que nada de errado iria acontecer. Aquilo bastou para que o menino adquirisse nova confiança. Estava decidido: iria morder a hóstia, com os pensamentos não apenas no decote, mas em todo o corpo da mãe da coleguinha, que agora ele despia safadamente em sua imaginação. Seu Anjo da Guarda, que estava em batalha desde que havia sido invocado há pouco, trocou um olhar com o do avô, e ambos se entristeceram.

Estava na vez do menino, e ele seguiu confiante, sem medo. Na hora em que o Bispo colocou-lhe a hóstia na boca, estava vivendo cenas indizíveis em sua imaginação. Mastigou com vontade o Corpo de Cristo, e então, o susto: a hóstia se transmutou em um pedaço de carne crua, sangrento. O pequeno sentiu o gosto daquele sangue que ia lhe escorrendo pelo queixo e pingando em sua roupa branca, e caiu de joelhos, apavorado. Voltou-lhe à mente, em letras garrafais, a palavra “indignidade”, e, logo em seguida, uma outra que estava amortecida, mas gravada em seu coração, tanto martelada pela avó: “caridade”. A palavra se fez enorme para ele, gigante, e era vermelha e sangrava como aquele pedaço de carne em sua boca. E em um segundo ele compreendeu o sentido de tudo o que havia aprendido de má vontade naquele último ano de catequese. Começou a chorar e olhou em torno: as pessoas o olhavam embasbacadas, a maioria havia se ajoelhado, muitos oravam, outros faziam o Sinal da Cruz. Quando ele olhou para os avós, estavam ambos ajoelhados, e o velho chorava de soluçar.

Naquele momento os Anjos dele e do avô se olharam de novo, e sorriram.


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