SANQUIXOTENE DE LA PANÇA | O Estado de São Pedro, as Chuvas, e o Prometeu Moderno

Paulo Sanchotene
Paulo Sanchotene
Paulo Roberto Tellechea Sanchotene é mestre em Direito pela UFRGS e possui um M.A. em Política pela Catholic University of America. Escreveu e apresentou trabalhos no Brasil e no exterior, sobre os pensamentos de Eric Voegelin, Russell Kirk, e Platão, sobre a história política americana, e sobre direito internacional. É casado e pai de dois filhos. Atualmente, mora no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira entre a civilização e a Argentina, onde administra a estância da família (Santo Antônio da Askatasuna).

Imagens de satélite de Porto Alegre e região metropolitana antes e depois. Estamos diante de um desastre de proporções que palavras não podem definir.” (Metsul)


Difícil escrever num momento e contexto sociais tão dolorosos quanto o que estamos passando aqui no Rio Grande do Sul. É o segundo ano consecutivo, mas agora numa dimensão ainda maior que qualquer outra anterior. Falo um pouco do estado, das chuvas, e da nossa era. Talvez tenhamos nos esquecido de certas coisas com o tempo que devemos relembrar.


Terça-feira, de 10 de Tercembro de 524

[para saber mais sobre o calendário tupiniquim, clica aqui.]

O RIO GRANDE DE SÃO PEDRO

O Rio Grande do Sul chama-se assim em decorrência da cidade de Rio Grande, primeiro povoamento oficial português na região. Por sua vez, esse nome é alusivo à Lagoa dos Patos – a maior lagoa da América do Sul. Confundida com um rio pelos colonizadores, esses batizaram o local em homenagem ao tamanho daquele corpo d’água. A cidade segue sendo “Rio Grande”. O estado ficou “Rio Grande do Sul” devido ao outro homônimo no Nordeste.

Porém, antes de chamar-se Rio Grande do Sul, o território aqui era também chamado pelo nome de seu santo padroeiro: São Pedro. Com o tempo, o nome do padroeiro foi perdendo força até que apenas “Rio Grande” passou a ser usado. Todavia, São Pedro segue sendo o santo do estado – ou melhor, o estado segue sendo do santo.

Não pesquisei o porquê de estas terras terem sido ofertadas a ele. Prefiro imaginar uma razão. Se for verdadeira, tanto melhor.

FRONTEIRAS SÃO INSTÁVEIS

O Rio Grande do Sul faz divisa com um estado brasileiro (1.300 km de extensão) e fronteira com dois países (1.800 km de extensão). O RS é mais ligado com o que há fora do que com o que há dentro. O estado marca o limite meridional e o ponto mais ao Sul do limite ocidental da América lusófona.

Falar isso é até “chover no molhado” [peço perdão pela expressão]. Todo mundo sabe. Menos pessoas sabem que além de fronteira política, o Rio Grande do Sul também se situa numa fronteira climática.

[Aliás, antes de entrar no assunto, quer dizer que sempre achei curioso ser possível enxergar o RS em mapas naturais. O estado, junto com o Uruguai, é quase uma ilha. O rio Uruguai separa essa região tanto da Argentina quanto do Brasil. A divisa terreste entre RS e SC é relativamente curta.]

A região aqui é “sanduichada” entre o clima frio do Sul (Argentina) e o clima quente do Norte (Brasil). Isso faz com que o tempo aqui seja tudo, menos regular. Eu tive um colega mineiro há muito tempo atrás, em Porto Alegre, e ele gostava de dizer que “gaúcho é naturalmente pasteurizado.” O traje típico aqui deveria ser sobretudo e sunga. Mas isso é só meia verdade.

Por ser irregular, temos variações bruscas no tempo. Porém, também temos períodos de constância. Só são igualmente irregulares. Podemos passar por períodos extensos de calor, de frio, de seca, de chuva… Só não sabemos bem exatamente quando, nem onde, e nem por quanto tempo.

“¿Calor em agosto?” ¡Sim! “¿Frio em janeiro?” Acontece, também. Claro que é mais comum calor no verão, frio no inverno, e chuvas no outono e na primavera. Mas a quantidade de exceções é quase suficiente para nos fazer questionar se de fato há regras.

AS ENCHENTES

Recentemente, ficamos literalmente sanduichados entre uma massa de ar quente que se formara sobre o sudeste brasileiro e uma frente fria vinda da Antártida. Ambas se encontraram aqui, e nenhuma conseguiu prevalecer sobre a outra. Enquanto o Brasil derretia e a Argentina congelava, nós ficamos abaixo d’água.

Isso se estendeu por mais de uma semana; chovendo o equivalente a mais de dois meses de precipitação [nalgumas localidades, chegou a 6 meses de chuva] em menos de duas semanas. Trata-se da terceira enchente desde 2017. A outra havia sido no ano passado. Entre essas enchentes, passamos por uma estiagem terrível.

POR QUE SÃO PEDRO

São Pedro é conhecido por ser o santo do tempo; o senhor das chuvas. Só consigo ver um motivo para que seja o padroeiro destes pagos: pela esperança de que assim nos olhe com carinho e se compadeça.

São Pedro, ¡rogai por nós!


HOMEM E NATUREZA

Por milênios, o ser humano entendeu-se como integrante da natureza.

Sempre houve a noção de que somos um primus inter pares (primeiro entre os iguais), mas a idéia de que seríamos “sin pares” (sem iguais) jamais fora dominante até bem pouco tempo – isso, relativamente falando. A diferença é bem importante.

Por entendermos que a nossa relação com as coisas do cosmos era de iguais, isso nos obrigava a nos adequarmos, a nos ajustarmos, a dialogarmos com o Meio Ambiente. Não nos é permitido fazermos qualquer coisa. Há uma ordem, da qual também fazemos parte, que precisa ser respeitada nas nossas tentativas de suprir nossas necessidades e realizar nossos desejos.

A HUBRIS MODERNA

Houve um momento, no entanto, em que a humanidade se convenceu da possibilidade de fazer o cosmos se curvar à nossa vontade; de fazer melhor que Deus. Foi aí que o homem se viu alheio à natureza. Passamos a fazer tudo sob a premissa de que nós mandamos; de que todo o resto deve se curvar a nós.

Os jardins franceses são exemplos mais simples disso. Porém, fomos muito além de mera decoração. Fizemos barragens e aterros, construímos em encostas, mudamos cursos de rios, etc., tudo achando que não precisamos “ouvir a opinião da natureza”.

Realizamos coisas absolutamente grandiosas; verdadeiras maravilhas. Porém, também fizemos muitas m… absolutamente evitáveis.

Cá estamos.

REFLEXÃO

¿O quanto essa tragédia gaúcha não poderia ter sido minimizada se tivéssemos mais cautela com a urbanização, para ficar em apenas um exemplo?

Deixo a reflexão aos leitores. Até a próxima.

2 COMENTÁRIOS

  1. Há que se crer que, assim que baixarem um pouco as águas e os maus ânimos – totalmente cabíveis – toda a população brasileira, ou quase, terá aprendido o quanto deve fiscalizar o uso do seu dinheiro, tanto como deve cobrar sim, o seus representantes nas três esferas.
    Afinal, quem está salvando seus iguais? O Estado? Quem juntou forças e realmente partiu imediatamente para a ação, ainda que desordenada, para salvar vidas, sem se preocupar com a conta no banco? O Estado?

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