BRUNA TORLAY丨Intempéries no Sul e crise social brasileira

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Quando uma sociedade atravessa crises, os menores eventos são suficientes para ferir seus nervos. Imagine então o que não gera uma crise com a extensão da vivida no sul do país. Nervos afloram e os componentes da discórdia vêm à tona, com violência semelhante à correnteza dos rios que inundaram cidades inteiras na bacia hidrográfica do Guaíba.

O primeiro ponto nevrálgico afetado foi a real necessidade de um Estado que consome quase 40% da riqueza produzida pela sociedade civil, quando ele se revela tão pequeno diante de calamidades públicas. Inúmeros grupos de voluntários, incluindo proprietários de helicópteros e embarcações de todos os tipos foram cruciais no resgate às pessoas gravemente afetadas pelas inomináveis enchentes. Os braços do estado existentes para conter crises mostrou-se insuficiente diante do problema real enfrentado por mais de 60% dos municípios gaúchos, incluindo a capital do estado.

Ademais, apesar de arrecadar trilhões em impostos, a União não agiu com a celeridade esperada com relação ao envio de recursos e a criação de uma força-tarefa nacional organizada, correspondente aos padrões astronômicos das verbas concentradas em Brasília. Por outro lado, a população foi rápida em organizar dezenas de “pontos virtuais” de arrecadação de ajuda humanitária, além de agilizar abrigos. Igrejas católicas e protestantes, indivíduos com ampla capacidade de mobilização social (como o humorista Whindersson Nunes e o historiador Thomas Giuliano), organizações civis e milhares de influenciadores agiram organicamente em prol do levantamento de recursos, solidarizando-se concretamente com as populações afetadas pela tragédia. A sociedade agiu conforme a natureza política do ser-humano: cooperando, estendendo a mão e exortando os demais a agir com justiça.

Esse contraste traz à tona o problema clássico da razão de ser do estado: ele só cumpre sua finalidade quando existe para a comunidade, e perverte sua razão de ser quando faz sociedades viverem para ele. Thomas Paine articulou o contraste de forma clara, ao dizer que o estado, se é um mal necessário (pois existe para conter impulsos humanos negativos e destrutivos), pode se tornar um mal intolerável, no preciso momento em que se torna a fonte dos problemas que se propõe a evitar. Há injustiça e perversidade entre os homens, de forma que alguns matam, roubam e violentam o próximo. O estado existe para manter em vigor um sistema de impedimento de crimes punição a transgressores. Quando o faz, cumpre seu papel de existir para a comunidade. Mas quando não é capaz de evitar morte, roubo e violência, por exemplo, sendo ainda uma fonte a mais de males desse tipo, enquanto, por existir, impede que a sociedade se proteja deles empregando os próprios recursos, aí ele se torna um mal intolerável.

Essa percepção está no ar. Por razões distintas, muitas pessoas se perguntam para que sustentar um estado que não existe para a população, mas apenas serve-se dela, agindo de forma insuficiente quando deve mostrar sua razão de ser. A maneira como tal impressão é formulada varia. Uns fazem troça do exército brasileiro, cujas operações não foram determinantes na minimização das desgraças, mas apenas um auxílio menor. Outros se incomodam com o caráter deficitário entre o valor arrecadado pelo estado do RGS e aquele realmente em poder do estado. Muito do que se arrecada não retorna, de forma que a sociedade sai perdendo, pois não tem os recursos que levantou para o bem comum do país, ao enfrentar calamidades de proporções inesperadas em sua própria casa. Há também apontamentos da leviandade como governantes alocam recursos públicos: prefeitura e estado do RJ acabam de investir 20 milhões de reais num show, a pretexto de aquecer a economia da cidade. A estrela do Show embolsou 17 milhões de reais no mesmo final de semana em que a cidade de Canoas desfalecia e testemunhava a UTI de um hospital ser invadida pelas águas, arrastando pacientes e espalhando pelo país as imagens mais chocantes da tragédia no sul.

Não importa que o RJ tenha se beneficiado com o evento. As perguntas importantes são outras: Somos ou não uma unidade nacional? Vivemos ou não uns com os outros? É decente que a maior emissora de TV do país transmita um show pop, enquanto um de seus estados soma adversidade e tristeza a cada gota de chuva adicional? É decente privilegiar, publicamente, uma festa enquanto centenas de velórios se anunciam? Evidente que não, e tampouco esse aspecto passou despercebido pela sociedade nos últimos dias.

Graças a Deus, diga-se de passagem. A reflexão pairando no ar comprova que temos saída, que o Brasil tem solução — ou pelo menos, que há muitos brasileiros em busca de pensar a melhor forma de resolver as nossas inconsistências políticas mais evidentes.

A crise social brasileira é profunda e suas fissuras tendem a intensificar-se, enquanto não forem realmente enfrentadas. Onde isso vai terminar? No momento, em expectativa de vidas ceifadas, cidades arrasadas, famílias desfalcadas e colheitas perdidas. Obviamente, a reflexão sobre se há sentido em sermos o que somos deve persistir, pelo menos enquanto aquela água toda não vier a baixar.

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4 COMENTÁRIOS

  1. Bom dia! Sou gaũcho, porém não residente no estado. Descobri que a ponte que liga a cidade de Nova Roma ao resto do estado do RGS, que tinha sido destruída pelas enchentes de 2023 e reconstruída pela população local, não foi destruída pela recente inundação. Trago a baila o fato, pois, ao meu ver corrobora para a matéria em pauta. Da ineficiência do estado frente a eficácia do poder privado. Por fim, tenho acompanhado situações como a da minha cidade natal, Santa Maria e Itaara, da celeridade com que os santamarienses estão refazendo a estrada do Perau e os demais acessos para a serra gaúcha. Deus abençoe à todos!

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