RESENHA丨Segredos insepultos no Bosque da invernada dos fundos

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

O Romance de estréia que rompeu o marasmo mesclando gêneros e foi prêmio de literatura

Há pouco mais de um ano, a primeira obra de André Ghiggi Caetano Da Silva, mescla bem sucedida de aventura, suspense, tragédia e sátira sob a moldura de um romance histórico regional, obteve reconhecimento da Academia Catarinense de Letras e levou o prêmio de Melhor romance do ano.

Não é para menos.

O Bosque da Invernada dos Fundos, lançado em 2019 pela editora Danúbio, é ambientado na região do Contestado, Santa Catarina, no final dos anos 70, abarcando no fio da novela o memorável ano de 1915, época da longa sedição entre insurgentes e República em torno da vasta desapropriação indevida de terras, às quais muita gente tinha direito conforme legislação da época.

Mas seria errôneo acentuar a moldura geral do romance, quando ela, de fato, cumpre função literal: a de suporte do quadro repleto de outros gêneros que se imiscuem com naturalidade, fazendo jus à tradição do romance como a pavimentou Cervantes lá atrás.

A graça do Quixote está na espécie de tapete formado de motivos distintos que se complementam com harmonia inesperada, atravessados por um misto de drama e humor que dão unidade à obra. Todo novelista instruído, por assim dizer, na arte de Cervantes; absolutamente concentrado em tecer as histórias dentro da história, ou os pontos de sátira dentro da tragédia central, produzindo um romance, mostra que a fórmula é eterna — como provou agora, mais uma vez na vida perene da literatura, esse autor estreante, mas incrivelmente esmerado.

O protagonista se exprime no português matizado de italiano próprio à população local; o linguajar dos peões de fazenda é fiel; os cenários, incrivemente bem recompostos (não é preciso ter estado nos campos presentes ao romance para ter a vívida impressão de os ter visto de perto); o padreco de adidas, ligado à então incipiente teologia da libertação, reza a pseudo-missa e pronuncia a homilia (desfigurada em slogans de sindicato) com a suprema mediocridade dos religiosos cujo modo de vida não tem nada de autenticamente religioso.

De resto, a ganância de uns é contrastada à piedade de outros; a soberba de Lúcifer, corporificada no mais mesquinho orgulho dos homens; a experiência do sagrado, convertida em expressão prática da genuína consciência moral.

O pior modo de evidenciar a alma de um romance é tentando recompor o enredo por meio do qual ela resplandece. Tudo perda de tempo. Bom mesmo é comprar essa modesta e admirável jóia, tirar uns dias de férias e abrir a primeira página no silêncio de qualquer recanto, fazendo o espírito passear pela história do Brasil recordando, no fundo de si mesma, de que ela é feita no final das contas.

Esgotado na editora, a obra ainda se acha disponível em livrarias de todo o país.

 “O dia não tem doze horas? Quem anda de dia não tropeça, pois vê a luz deste mundo. Quando anda de noite, tropeça, pois nele não há luz”.

João, 11, 9-10

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