RONALDO MOTA | O Espírito da Semana de Arte Moderna

Ronaldo Mota
Ronaldo Mota
Neste espaço discutiremos diversos temas de filosofia, antropologia e cultura de modo crítico e ácido, sempre fugindo do lugar comum e das explicações simplórias. É uma coluna dedicada a quem tem fome e sede de verdade; a quem não confunde assertividade com soberba; a quem é constantemente fustigado pelo chicote espiritual do amor à Sabedoria, que impele sempre para a origem e para os fundamentos das coisas.

Dadá é um estado de espírito” – André Breton[1]

Um editorial da Folha de São Paulo de 1978, intitulado Sarampo Antropofágico[2], discutia a Semana de 22 nos seguintes termos:

Do ponto de vista artístico, o objetivo fundamental da Semana foi acertar os ponteiros da nossa literatura com a modernidade contemporânea. Para isso, era necessário entrar em contato com as técnicas literárias e visões de mundo do futurismo, do dadaísmo, do expressionismo e do surrealismo, que formavam, na mesma época, a vanguarda europeia.” 

A Semana de Arte Moderna queria também, ainda segundo o referido editorial, “denunciar o atraso, a miséria e o subdesenvolvimento”.

Ora, essa vinculação dos idealizadores da Semana de 22 com as vanguardas europeias é vastamente conhecida. O futurismo italiano já influenciava autores brasileiros como Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida; em 1917 Anita Malfatti realiza, sob fortes influências do cubismo e do expressionismo, aquela que ficou conhecida como a primeira exposição modernista brasileira; no Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade nos dirá:

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro[3]

O repúdio aos padrões da arte clássica, bem como o repúdio às nossas raízes europeias, explode na Semana de Arte Moderna com base nas experiências das vanguardas artísticas europeias e na denúncia social de cunho marxista, ironicamente também de origem europeia. Evidentemente, não podemos reduzir todo o universo do modernismo brasileiro a estes termos aqui identificados. Todavia, essas fontes são muito importantes para que sejam deixadas de lado.  

Esse vínculo entre crítica artística e crítica social, entre modernismo e comunismo, entre surrealismo e marxismo, aparece de forma muito interessante, clara e concreta na relação estabelecida entre André Breton e Liev Davidovich Bronstein (Trotski).     

Em 1938, Trotski recebe em seu refúgio no México aquele que ele denominou “o cabeça do surrealismo[4], Breton. Os dois conversaram e discutiram diversos temas relacionados às artes por meses, juntamente com o pintor Diego Rivera. Desse intenso intercâmbio brotará, entre outras coisas, a fundação da Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente (F.I.A.R.I), bem como a publicação do manifesto Por uma Arte Revolucionária Independente.[5]

O manifesto Por uma Arte Revolucionária Independente foi assinado por Breton e Rivera, mas teve parágrafos inteiros redigidos por Trotski e foi totalmente revisto e corrigido por ele.[6]

Antes de entrarmos no conteúdo do referido manifesto marxista-surrealista, se é que assim podemos descrevê-lo, é importante que nos detenhamos por algumas linhas no espírito dessa vanguarda europeia que deu origem ao dadaísmo e ao surrealismo.

Segundo Dawn Ades[7], a relação entre dadaísmo e surrealismo é complexa precisamente porque, sob muitos aspectos, dadaísmo e surrealismo são muito semelhantes. Para Dawn Ades, a diferença mais radical entre eles residiria na formulação de princípios surrealistas enquanto o dadaísmo permanecia completamente anárquico. No Segundo Manifesto Surrealista (1930), Breton dirá:

Tudo sugere a existência de um certo ponto da mente no qual vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, as alturas e as profundidades deixam de ser percebidas como contraditórias. Ora, seria em vão que se busque qualquer outro motivo para a atividade surrealista a não ser a esperança de determinar esse ponto.[8]

Vemos nesse ponto a busca por aquela síntese dos opostos numa realidade superior celebrada por Karl Marx. Essa busca, naturalmente, não se vincula à razão, aos valores morais e nem mesmo à estética. Afinal, segundo a própria definição de surrealismo expressa no Manifesto Surrealista (1924):

SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.”.[9]

Aqui já começamos distinguir em que termos filosóficos se fundamenta esse espírito anti razão, anti moral e anti estética das vanguardas artísticas europeias que inspiraram nosso movimento modernista e, inevitavelmente, a Semana de Arte Moderna.

Esse espírito iconoclasta e niilista vicejava no início de 1916 no Cabaré Voltaire, em Zurique, onde Hugo Ball, Arp, Marcel Janco, Tristan Tzara e outros pariram Dadá.

Arp, um dos fundadores do dadaísmo, assim o descreveu:

Dadá visou destruir as razoáveis ilusões do homem e recuperar a ordem natural e absurda. Dadá quis substituir o contrassenso lógico dos homens de hoje pelo ilogicamente desprovido de sentido. É por isso que golpeamos com toda a força o grande tambor de Dadá e proclamamos as virtudes da não-razão. Dadá é desprovido de sentido como a natureza. Dadá é pela natureza e contra a arte.”.[10]  

Essa revolta contra a razão e a realidade, naturalmente, voltava-se contra aquilo que os dadaístas viam como a realidade social vigente. Tzara ironizava:

É propósito da arte fazer dinheiro e agradar ao amável burguês? As rimas soam com a assonância da moeda circulante, e a inflexão desliza ao longo da linha da barriga de perfil.”.[11]

Os dadaístas chocavam as pessoas com suas “cenas” ou exposições absolutamente desprovidas de sentido. Hoje isso tornou-se um lugar comum. Entretanto, em 1920 isso fez com que o Chefe de Polícia de Colônia processasse os dadaístas por fraude, ao cobrarem entrada para uma exposição de arte. A resposta não se fez esperar. Max Ernst declarou:

Informamos claramente que se tratava de uma exposição Dadá. Nunca foi afirmado que o Dadá tivesse qualquer coisa a ver com arte.”.[12]

Essa “exposição” dadaísta, orientada por Max Ernst, foi apresentada em um pátio ao qual se tinha acesso pela porta de um banheiro da Bräuhaus Winter. Os visitantes foram recebidos por uma garotinha vestida com traje branco de primeira comunhão, recitando poemas obscenos. Havia uma porção de objetos descartáveis expostos; uma escultura de Ernst com um machado preso ao lado, onde o público era convidado a despedaça-la; havia um tanque cheio de água tingida de vermelho com cabelos flutuando, uma mão humana de madeira aparecendo na superfície e um despertador no fundo do tanque.

Essa revolta niilista dos dadaístas, que se expressava desse modo, negando a razão e consequentemente negando a arte ou a possibilidade de qualquer conceituação de arte, era verdadeiramente um estado de espírito antes de qualquer coisa.

Ora, esse estado de espírito, quer seja por uma afinidade eletiva ou por uma remota origem comum, harmonizou-se facilmente com o espírito revolucionário do trotskismo. E vimos, então, a partir dessa cópula dantesca, ter início a gestação de um conceito de arte revolucionária que veio ao mundo no Manifesto Por uma Arte Revolucionaria Independente, onde se pode ler:

Do que ficou dito decorre claramente que ao defender a liberdade de criação, não pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo político e longe está de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita “pura” que de ordinário serve aos objetivos mais do que impuros da reação. Não, nós temos um conceito muito elevado da função da arte para negar sua influência sobre o destino da sociedade. Consideramos que a tarefa suprema da arte em nossa época é participar consciente e ativamente da preparação da revolução.”.[13]   

A nós parece claro que esse espírito perpassa todo o modernismo; aqui com tonalidades mais amenas, acolá com tons quentes; aqui com sutileza, acolá com violência; aqui parcialmente, acolá totalmente; mas aqui e acolá se pode discerni-lo ao definir os contornos dos movimentos sutilmente ou irrompendo em ações diretas que dão forma concreta ao Zeit Geist.

Como afirmei logo no início do artigo, não se pode definir a totalidade do modernismo brasileiro ou da Semana de 22 apenas com base nestes traços esquemáticos de um espírito que anima o movimento modernista. Todavia, é o espírito que dá vida à arte ou ao que dela restou.   


[1] Conceitos de arte moderna. Org.: Nikos Stangos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2000, p. 82.

[2] Cf.: http://almanaque.folha.uol.com.br/semana22.htm

[3] Cf.: https://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf

[4] Por uma Arte Revolucionária Independente. Breton/Trotski. São Paulo: Ed. Paz e Terra: CEMAP, 1985, p17.

[5] Idem, pp. 13-33

[6] Idem, pp. 22-25

[7] Conceitos de arte moderna. Org.: Nikos Stangos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2000, p. 90

[8] Idem, pp. 97-98

[9] Cf.: https://www.nodo50.org/insurgentes/biblioteca/manifesto_surrealista.pdf

[10] Conceitos de arte moderna. Org.: Nikos Stangos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2000, p. 84

[11] Idem, p. 82

[12] Idem, p. 87

[13] Por uma Arte Revolucionária Independente. Breton/Trotski. São Paulo: Ed. Paz e Terra: CEMAP, 1985, p.43

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