ISRAEL SIMÕES | A jornada do herói

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

Semana passada fiz uma live com nossa editora-chefe, Bruna Torlay, para divulgar a nova edição da Revista Esmeril, Herdeiros de Magalhães (um primor de texto, diga-se de passagem). O papo deu o mesmo grau de giro do navegador português: falamos de política, suicídio, dialética, perucas (…). No meio da prosa, meio de supetão, fiz surgir o nome de outro comandante: Jair Bolsonaro. Compartilhei uma constatação bastante pessoal de que o ex-presidente havia cumprido sua vocação em 01 de janeiro de 2019. Fechou o círculo, completou a volta ao mundo, no dia da sua posse como presidente. Os 4 anos seguintes foram arrastados por um homem que já não sabia muito bem que missão cumprir, como Noé depois do dilúvio.

Não que Jair não tenha os seus méritos como presidente, pelo contrário, são muitos: montou a melhor equipe ministerial que este país já teve, promoveu reformas, desburocratizou a máquina pública, enfrentou o lobby da grande mídia, das farmacêuticas, das ONG’s ambientais… e para a alegria deste autor (que vive um projeto maromba há mais de 15 anos, sem sucesso), zerou o imposto do whey protein. Excelente presidente da república.

Mas o herói nacional, o salvador da pátria que, por um ato de enorme bravura e sacrifício livraria a nação das garras do socialismo, não aconteceu. “Miou”, como diz a gíria popular, brochou o imbrochável, para a frustração daqueles que levantavam pelos aeroportos o alarido de “mito-mito-mito”.

Sejamos justos: não eram os conservadores que esperavam, num só golpe, a implosão de Brasília como o último feito de Bolsonaro. Eram os bolsominions (termo que reputo um tanto impreciso, mas por hora, serve). O conservador não confunde o heroísmo com a guilhotina da turba revolucionária.

Ele sabe que construir palcos sobre os medos e fobias da massa é manobra de maníaco travestido de palhaço. A ordem social, que faz ressoar o martelo da justiça e cair por terra os poderes perversos, nasce das conversas subterrâneas e tediosas entre Alfred e Bruce Wayne. O heroísmo, para o conservador, está nas ações diárias, que não abdicam das circunstâncias. É realista, paciente e certeiro.

Quatro anos de governo eram tempo suficiente para desmantelar pelo menos parte do mecanismo socialista que se infiltra como um câncer nas entranhas da educação, da mídia, nas estruturas sociais responsáveis pela verdadeira revolução cultural. Estruturas não, pessoas: Olavo de Carvalho morreu bradando aos quatro ventos, processe o CPF! Intimide-os! Faça-os recuar!

E Bolsonaro até que tentou, mas não deu. Os velhos caciques já estão de volta ao poder, com instrumentos cada vez mais sofisticados de controle social.

Convenhamos: uma mente como a de Bolsonaro, forjada no corporativismo, tem lá suas dificuldades para se soltar dos tentáculos institucionais. E é aqui que encontramos a resposta: não espere heroísmo do homem-massa.

Nem falo tanto da perspectiva de Ortega y Gasset de homem-massa, aquele achatamento da personalidade humana durante a era industrial, mas de uma medida naturalmente reduzida de suas motivações interiores: uma personalidade adolescente, camada 5.

O leitor já sabe a que me refiro. Há duas semanas afirmei nesta mesma coluna que

“Se houve um erro que Bolsonaro cometeu foi o de se aliar a conservadores de aparência, que gritam alto, batem na mesa, mas que nunca apresentaram ações objetivas na direção da guerra cultural (podemos também falar em acerto, já que pelas mesmas aparências, caíram suas máscaras). Na psicologia do Prof. Olavo de Carvalho classificamos esses indivíduos como “personalidades de camada 5”, eternos adolescentes, presos na necessidade de autoafirmação, incapazes de desenvolver a lealdade a alguém que não seja eles mesmos. Como precisam bancar os valentões, escondem os sofrimentos que levariam a uma autocrítica, isolando-se por sua chatice, o que só lhes reforça a sensação de autonomia e superioridade.

Israel Simões, Contra o zambellismo: Nikole

(Se quiser compreender melhor as motivações de cada camada, consulte a apostila em PDF do Professor Olavo de Carvalho. Está disponível em seu site, gratuitamente).

Não acho Bolsonaro chato, mas valentão, não há dúvidas. O andar marchado, a testa franzida, o dedo em riste, a boca suja, foram os traços de macho-alfa que o alçaram à fama em meio ao mar de fernando-henrique-cardosos que comandavam a política brasileira. Ele era capaz de encurralar, com uma só frase curta e grossa, Luciana Gimenez, seus colegas de sofá da mais distinta vulgaridade e uma plateia treinada para aplaudir e vaiar conforme a pauta. Era o mestre do corte rápido, como faca Tramontina.

À medida em que se aproximava das eleições de 2018, Bolsonaro acelerava mais o trator, atropelando aqueles concorrentes débeis que disputavam a presidência, como Fernando Haddad e Marina Silva. Também humilhava sem piedade os estagiários-jornalistas das conferências de imprensa que pululavam com as perguntas mais descabidas. O homem camada 5 já provara sua força e estava preparado para subir de degrau, a camada 6 da personalidade, quando abandonamos a afirmação de poder pessoal em favor da obtenção de um resultado efetivo. No caso de Bolsonaro, vencer as eleições.

Mas faltava um estopim, o grito do Ipiranga. Nosso herói conservador improvisado precisava de um teste de fogo, aquela provação de morte pela qual passa o valente para mostrar-se digno da espada, um teste físico de extrema dificuldade, um conflito interior mortal, nas palavras do mitologista Joseph Campbell.

Então veio a facada.

As imagens que percorreram o Brasil depois do golpe de Adélio Bispo (era faca Tramontina!?) construíram, no imaginário popular, o mito. O rasgo do peito à virilha, o homem à beira da morte, a lágrima do filho sobre a bandeira da nação eram o cenário perfeito para uma jornada de ressureição. Aqueles que nunca acreditaram naquele sujeito destemido deveriam curvar suas cabeças e reconhecer sua renúncia pessoal louvável.

Mas lembre-se, estamos falando de um homem camada 6. O que tudo isso significa aos seus olhos? Como ele absorve tais circunstâncias tão profundamente adversas? Seria um salto às motivações mais elevadas do Eu transcendental? Não, bem menos do que isso: estamos falando apenas do deslocamento da ação individual a um quadro mais amplo de reciprocidades com o meio social. O homem de camada 7 incorpora, com amor e devoção, o dever que lhe cabe como marido, pai, profissional e cidadão.

Do hospital emerge um Bolsonaro que frequentemente vai às lágrimas. Ele está mais poroso, sentindo a enorme demanda afetiva da multidão que lhe cerca. Agora seu coração de pai é capaz de acolher novos filhos, dilatar os braços, ser homem maduro, humanizado, livre do utilitarismo.   

Nosso herói venceu a facada, as eleições e toda descrença de quem tentava lhe diminuir.

Que trajetória! Aquele jovem militar destacado por sua ascensão técnica, que por ambições salariais converteu-se em dissidente, pego em conluios, preso pelos próprios superiores, deslocado à reserva e finalmente obrigado a uma nova carreira na política (diga-se de passagem, bem mais promissora) havia alcançado o mais alto posto de poder do país. Agora ele era Comandante Supremo das Forças Armadas e…ganhava 30 mil.  

Nas palavras do Professor Olavo de Carvalho,

Quando um sujeito assume um papel social, isto significa que ele nasceu, teve tendências hereditárias, passou por um aprendizado, vivenciou uma história e conquistou seu espaço vital, onde selecionou certas áreas sobre as quais adquiriu um poder específico que lhe permite desempenhar um papel social e ser reconhecido através dele. Assim podemos delinear uma vida.

Olavo de Carvalho, As 12 camadas da personalidade

Este é o círculo que se fecha na abotuadura da faixa presidencial: uma vida prática que, finalmente, encontra o seu reconhecimento.

Nunca recebi em meu consultório um paciente que não estivesse abaixo da camada 7. As situações da vida adulta e seus papéis sociais são o verdadeiro desafio dos brasileiros, uma legião de camadas 4 e 5, pessoas carentes como crianças ou instáveis como adolescentes. A jornada de Bolsonaro, portanto, traduz a vitória do desenvolvimento pleno de um indivíduo, muito mais do que a transformação cultural de uma nação.

O que o Brasil assistiria, depois de 01 de janeiro de 2019, era a luta de um homem para estabilizar o seu caráter, no sentido das tendências que marcam a individualidade. Não apenas no aspecto físico, ou estilo pessoal, mas abarcando também as capacidades, o espaço vital, a própria história de vida. Ele queria ser ele, sujeito feito, autônomo, de disposições interiores intactas.

Mas tão logo encheu seu governo de membros das forças armadas, muitos dos quais viriam a se tornar inimigos públicos, estava clara a dificuldade pessoal de Bolsonaro para se desvencilhar do velho espírito coletivista das escolas de formação militar. Essa era a verdadeira batalha do ex-presidente: entender o seu lugar entre as patentes superiores, os olavetes, o povo e sua própria família no tabuleiro político. Dilema pessoal dele, não dos conservadores.

Quando finalmente compreendeu quem era quem, foi tarde. Perdeu as eleições cercado de bajuladores incapazes de construir uma estratégia eleitoral contextualizada e uns tantos traidores que logo removeriam suas máscaras (já apontei uma por aqui…voltem dois artigos).

A paralisia reclusa, após a derrota nas eleições de 2022, foi apenas aquele momento profetizado por Lavelle em que todo homem se depara com a significação de sua existência e, com ela, suas misérias e tropeços. Abandonado por muitos de seus aliados políticos, ignorado pelos antigos amigos de farda, Bolsonaro parecia regressar à condição de jovem palmeirense do interior de São Paulo, cujos pais, de ano em ano, mudavam de cidade. Estava sem lugar, à margem da comunidade.

Mas não houve retrocesso nenhum, pelo contrário: a crise evolutiva de Bolsonaro é a necessária passagem a um novo estado de consciência, uma mudança de orientação da contingência à totalidade, quando o sujeito se confronta com o destino que lhe cabe nesta vida. Depois de tantas decepções pertinentes à forja heroicista, Bolsonaro agora está definido, individualizado, ciente dos seus próprios atos, das suas circunstâncias e de como eles compõem um mapa pessoal, aquilo que chamamos de experiência.

Nosso herói finalmente alcança a camada 8, a da “Síntese Individual”, o mínimo de estabilização psíquica para forjar um herói que se preze (e, talvez, por uma predestinação do universo, sem um cargo público para chamar de seu…).

Se os nossos supremos ministros permitirem a volta do guerreiro ao campo de batalha, provavelmente veremos, nas eleições de 2026, um novo Bolsonaro, capaz de conquistar um papel definitivo dentro da história brasileira e da hierarquia da humanidade. Um homem camada 10, desde que aproveite o longo período de férias para transitar pela vida intelectual, lendo uns bons livros de filosofia política, literatura clássica e, quem sabe, os artigos da Revista Esmeril.

Ressurgirá nosso herói improvisado como a fênix? Terá ele deixado a sua natureza de homem comum, desses que lutam com socos, chutes e palavrões, para revelar algum poder especial capaz de abalar, na base, o esquema de poder da nossa república? Isso somente o tempo dirá.

Fato é que Jair Bolsonaro já perdeu o guiamento do mestre Olavo vivo.

Torçamos para que não desperdice o seu legado.

Direitos de imagem: https://www.flickr.com/photos/51178866@N04/48693201422/

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3 COMENTÁRIOS

  1. Não acontecerá. A chance já passou.

    Não precisamos de uma pessoa. Precisamos de várias. Só com o tempo para formá-las.

    A força institucional ainda é gigante, apesar do declínio. Então, seguirá fazendo estragos. Podemos fazer muito pouco quanto a isso.

    Nossa tarefa é de semear e preparar o terreno. Assim, quando possível, as sementes que plantamos poderão germinar.

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