INTELECTUAIS & SOCIEDADE | Subversão é obediência

Nati Jaremko
Nati Jaremkohttps://medium.com/@naty.jaremko
Tentando sobreviver ao mestrado em história e uma grande curiosa nesse mundo do conhecimento. Libertária. Gosto quando posso falar e pensar livremente. Começando a escrever umas coisinhas aqui e ali.

[…] abolindo a distância normal entre a esfera da ação e a da especulação, suprime […] a diferença entre o efetivo e o possível, e nos precipita numa crise alucinatória onde já não há lugar para o recuo teorético que fundamenta a noção mesma de verdade objetiva

CARVALHO, Olavo. O Jardim das Aflições.

Comecei o dia recebendo por email a nota de um comitê científico de contingenciamento sanitário, da universidade em que estudo, sobre novas medidas restritivas para suposto combate ao único agente infeccioso que causa preocupação hoje em dia. Entre os itens da nota, dois merecem especial atenção: um que orienta os alunos e funcionários a reduzirem o tempo das refeições e a limitarem o contato entre si no restaurante, elencando especificamente a orientação de evitar diálogos, termo que consta no texto. O outro que desaconselha a organização de festas e eventos. Além disso constam as já conhecidas regras que incluem violações descaradas à privacidade e autonomia sobre o próprio corpo dos que frequentam o espaço e compõem aquela comunidade.

O primeiro item me chama a atenção pela naturalidade como vem sendo construída a cultura do patrulhamento, como a engenharia social e o caráter centralizador e monopolista do modo moderno de organização da sociedade está extrapolando suas esferas “clássicas” de pertencimento. Situações cada vez mais subjetivas são inseridas em diretrizes representadas por discursos objetivos. Não bastasse a função social da terra, constrói-se aos poucos a função social do diálogo. Conversar? Só se for necessário. E o que é crucial em termos de comunicação passa a ser decido burocraticamente.

Notável também é a ausência de resistência a mudanças bruscas no senso de normalidade que norteia a convivência humana. Cláusulas do contrato social são alteradas, apagadas, novas são criadas ao bel-prazer dos donos do poder e através de justificativas vagas envolvendo um apelo à narrativa do estado de urgência. Ora, mas a pressa em se resolver algo não é garantia do bom sucesso de quaisquer esforços relacionados – prática ou retoricamente – à sua solução. Mas chegar a essa conclusão requer racionalidade, clareza de pensamento e honestidade intelectual, e não há raciocínio lógico ou configuração moral que supere o apreço do intelectual orgânico por um selinho de autoridade, pela carteirinha do especialista.

Os mesmos colegas que militam em torno de coletivos com nomes como “subversivos” não têm brio para emitir um grunhido de desagrado perante as tentativas de intervenção em seus momentos de descontração e conexão com outros seres humanos. Termos vagos como “responsabilidade coletiva”, “solidariedade” povoam o novo imaginário e superam a prerrogativa de valores básicos relacionados à liberdade de pensamento e autonomia sobre o próprio corpo. O prazer pela sensação de pertencimento, pela licença para moralizar a vida dos outros e pela ilusão de tomar parte nos mecanismos de controle substituí a necessidade real de assumir responsabilidade por escolhas feitas livremente e de se sacrificar de fato por alguém.

Validar o discurso da caridade desobriga esse indivíduo inebriado pela ideologia a assistir objetivamente alguém, pelo contrário, eles ajudam a sustentar uma tirania que prejudica os outros enquanto tranquilizam sua consciência por meio do ideal que defendem. Ao mesmo tempo em que as interferências petulantes e até perigosas no direito do indivíduo sobre a integridade do próprio corpo são mandatórias, a redução das festas é apenas aconselhável, afinal a linguagem contribui para formação do imaginário, e nessa cosmovisão a associação dos donos do poder com qualquer imagem remotamente moralista deve ser evitada.

A tirania sanitária se estabeleceu através de uma preocupação sistemática com um único aspecto da vida humana, a saúde, e dentro dele com apenas uma das possíveis ameaças. A proteção da humanidade foi resumida a uma presumível garantia de resguardo  de um de seus aspectos. Uma suposta luta justificou a banalização da liberdade de expressão, a minimização da importância da concorrência de ideias, o esvaziamento de sentido de valores como solidariedade e responsabilidade – que pertencem ao campo da consciência individual e de uma apreensão subjetiva da realidade, não fazendo sentido num raciocínio protocolar –, a criação de um precedente perpétuo para o autoritarismo, que é o estado de exceção, o sentido de urgência.  

A defesa da humanidade é desculpa para sua destruição. A bandeira de preservação da vida legitima medidas que atentam em si contra a existência humana. As pessoas são encorajadas a se relacionar de maneira remota, afinal, a melhor forma de fugir a algo inerente à constituição biológica é anular justamente seu caráter orgânico. Nos tornemos todos máquinas então! “Mas assim nem haveria corpo humano vivo a ser preservado”, responderiam os inocentes. Mas a humanidade sempre foi o meio e não o fim último desse movimento ideológico.  

O objetivo é a continuidade da concentração de poder e não a construção da sociedade, e a incongruência argumentativa é constitutiva da narrativa disseminada. A teoria só serve para estimular retoricamente a ação que, depois de realizada, é retoricamente legitimada pela mesma teoria, e sempre com um entendimento de que, qualquer que seja o resultado, ele será interpretado como positivo. E não foi o que vimos acontecer nesses últimos anos? Malabarismos lógicos para fornecer explicação ao afastamento constante entre a função de determinada diretriz e suas reais consequências.

A humanidade foi transformada num laboratório em que hipóteses, mesmo as mais remotas, eram testadas em tempo real enquanto se impunha a ideia de que os dirigentes detinham o mínimo de controle da situação. O povo foi violado e maltratado enquanto uns poucos privilegiados mantiveram seu padrão de vida, mas os subversivos, ora aplaudiam o experimento, ora se calavam.

Negaram ao homem as prerrogativas mais elementares de sua existência social e civilizacional: raciocínio lógico é substituído por crença em entidades burocráticas que representam o conhecimento, a ausência de debate é mascarada por divergências frívolas entre aduladores mútuos,  ceticismo científico, inerente ao método, é transformado em negacionismo; contato físico se torna eternamente perigoso com base em argumentos circulares que se resumem a quem está vivo corre o risco de morrer, a moral basilar é substituída por regras ditadas em caráter circunstancial, ética por utilitarismo. E tudo isso se forma pela sujeição da humanidade às arbitrariedades dos mandantes. Obediência acaba por se tornar subversão mesmo, e não em sentido metafórico.  

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