INTELECTUAIS & SOCIEDADE丨A intelligentsia e a manipulação da linguagem

Nati Jaremko
Nati Jaremkohttps://medium.com/@naty.jaremko
Tentando sobreviver ao mestrado em história e uma grande curiosa nesse mundo do conhecimento. Libertária. Gosto quando posso falar e pensar livremente. Começando a escrever umas coisinhas aqui e ali.

Afirmações recentes feitas no Jornal Nacional, durante entrevista com o presidente da República, sobre o caráter maleável das orientações divulgadas por ali e por outros membros da intelligentsia aos cidadãos comuns, no começo da crise sanitária, causaram grande rebuliço. Muitos perceberam o equívoco nesse modo de relembrar as coisas e começaram a desenterrar evidências do contrário; já outros, de imediato e sem qualquer reflexão anterior, passaram a acrescentar a expressão condicional – “se puder” –, trazida pela jornalista, à sua própria memória.

As discussões deixaram instantaneamente de girar em torno da ética na imposição do confinamento social, da anuência da classe falante à redução da liberdade ou até mesmo dos limites da autonomia individual e tornaram-se disputas semânticas permeadas por tentativas de sugerir que as restrições não ocorreram de fato, e por contestações mimadas do nível de austeridade presente nos “conselhos” intrometidos emitidos pela mídia.

As estratégias principais que vi, até agora, sendo empregadas no combate a essa abordagem quase orwelliana do passado recente foram a retomada de episódios em que os comunicadores se mostraram categóricos em seu respaldo autoritário e sua posterior exposição, e o engajamento em discussões, cá entre nós bastante inconclusivas, sobre o conceito de lockdown em si.

A primeira coisa que chama a atenção é o poder dessas classes de interferir na realidade: mesmo os que não são facilmente convencidos pela nova versão dos fatos devem engajar-se em debates cujos parâmetros são fornecidos por elas. A começar pelos indícios de que houvera sim legitimação de autoritarismo, que foram prontamente descredibilizados pelos fiscais da “verdade” com base em análises cinicamente literais dos discursos que os empregaram. E a discussão em torno da ideia de confinamento que estava condenada desde o início, dado que não fora estabelecido um ponto de partida, uma definição do conceito, que fosse anterior aos debates?

Quantas pessoas em confinamento configurariam um lockdown? Por quanto tempo a limitação da circulação deveria ocorrer para que a política pública fosse assim classificada? Os detalhes da definição dentro do contexto em questão não foram acordados antes do debate, e a fluidez de sentido na adoção do termo não parecia incomodar ninguém até então. Os mesmos que dizem, agora, que a medida não fora estabelecida, discursavam em favor de sua manutenção em outra ocasião. Tal incoerência só é possível quando não se tem uma referência semântica clara e ancorada fora do sistema que gerou o debate. Nesse caso, quem decide como interpretar os vácuos de sentido são justamente os que detém o poder sobre a produção e a distribuição de ideias: os intelectuais.

O ponto principal é que, independentemente dos vocábulos e expressões utilizados, houve interferências autoritárias e violentas na vida dos indivíduos e uma redução brusca na prerrogativa da esfera privada, o que trouxe consequências para as cadeias de produção e distribuição de riquezas, bem como para o bem-estar humano, que são mensuráveis e logicamente verificáveis. É um desfecho coerente da redução da atividade social e do contato interpessoal, a despeito do nome que se dê a isso enquanto diretriz.

Tudo isso ocorreu com aprovação massiva, ou no mínimo após certa omissão, de membros da intelligentsia, e essa é a essência da discussão, não os adornos narrativos. Tivessem os comunicadores usado desde o início a oração condicional que inflamou a polêmica, manteriam suas posições de porta-vozes dos que decidiram arbitrariamente quando era necessário e quem poderia sair, de maneira que a ressalva do “se puder”se esvazia de sentido e o cerne da disputa se mantém. Não me surpreende que a acepção real da coisa se perca em meio aos incessantes equívocos associados ao universo das linguagens, que vêm sendo continuamente acatados pelos acadêmicos e perpetrados por essas estruturas de controle centralizado.

Existem ângulos diferentes sob os quais os conceitos são empregados, as intenções contam no processo de comunicação simbólica e a civilização se constitui ao longo da história sob um esforço de ampliar o imaginário para aumentar os recursos de compreensão. Esse patrulhamento institucional, contudo, vai na direção oposta ao julgar arbitrariamente as funções da linguagem. Eles ignoram que a aproximação entre os signos e a realidade é sempre uma busca ideal e não indica uma existência concreta. Essa confusão entre representação e realidade, ignorando referências basilares anteriores, dá poder à casta que tem a palavra final nos conflitos de interpretação.

As tentativas de mudar a narrativa sobre os apelos à imposição do confinamento social passam ao largo da problematização feita pelos fiscais da verdade, ao mesmo tempo que a investida contrária recebe reprimenda de todos os lados, com justificativas como a de que os jornalistas também disseram que médicos, por exemplo, poderiam trabalhar, portanto, literalmente, houve um “se puder”, só não fora definido quem decidiria a circunstância.

Os intelectuais trabalham exclusivamente com ideias e estas, conquanto interfiram na realidade material – como o próprio exemplo do texto reforça –, não são, pela própria natureza do trabalho, diretamente associadas às consequências que geram, o que explica em partes essa permissividade com que transitam pelas esferas de relações humanas, contribuindo para a complexificação da organização social, sem se preocuparem com os efeitos morais das estruturas que ajudam a pôr de pé, capacitando, no meio do caminho, membros das classes burocráticas a dar vazão a seus arroubos autoritários.

Seja qual for a explicação para as leviandades, fato é que não é de hoje que a intelligentsia é cúmplice de atrocidades devido à confusão estabelecida entre realidade imediata e a História com um desfecho utópico: se o foco do raciocínio está no modelo adotado pela teoria, fica fácil fechar os olhos para o que da civilização é destroçado no meio do caminho que supostamente conduziria ao ideal. Nas palavras de Todorov:

A memória de nossos lutos nos impede de percebermos os sofrimentos dos outros.

Todorov, La Morale de l’historien
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