HOJE NA HISTÓRIA | Nasce Dostoiévski

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

O trabalho do escritor russo representa um “divisor de águas” na compreensão da condição humana através da Literatura. Para Otto Maria Carpeaux, “tudo o que é pré-dostoievskiano é pré-histórico

Fiódor Mijáilovich Dostoiévski nasceu no longínquo 30 de outubro de 1821, pelo calendário juliano vigente na Rússia. Aquela distante véspera de Halloween, no entanto, — com o perdão do anacronismo — faz-se presente sempre quando, desafiados pela vida, nos dispomos a pensar sobre o perdão, a redenção, o heroísmo, o amor, a coragem, os dilemas morais e, em suma, sobre a complexidade da existência. O trabalho do escritor consiste em traduzir em palavras a experiência humana encenada sobre o palco da realidade.

Evidentemente é necessário que, para tanto, o narrador descubra ser preciso mergulhar na alma humana; perscrutá-la, discerni-la com precisão cirúrgica. Não é trabalho fácil, não basta simplesmente correr a pena sobre o papel em branco. Não. O trabalho do escritor tem um quê de místico, porque é um exercício de ascese. Escritor e leitor ascendem a novos níveis de entendimento acerca da condição humana quando vislumbram as possibilidades tipificadas na Literatura. Assim é que Dostoiévski se faz um grande guia.

Sobre o escritor russo deixemos o crítico Otto Maria Carpeaux dizer algumas palavras: “Existem poucos escritores cuja obra tenha sido tão tenazmente mal compreendida como a de Dostoiévski. Dostoiévski é, se não o maior, decerto o mais poderoso escritor do século 19; ou do século 20, pois a sua obra constitui o marco entre dois séculos da literatura. Literariamente, tudo o que é pré-dostoievskiano é pré-histórico; ninguém escapa à sua influência subjugadora, nem sequer os mais contrários.

Parece, porém, que toda a Europa tenta resistir-lhe, instintivamente e obstinadamente; e como esse bárbaro barbado, com a face sulcada de sofrimentos, parece irresistível, os europeus entrincheiram-se, ao menos, num baluarte de interpretações erradas. (…) O que ele fixa — e com que segurança! — são as paisagens da alma. E o espírito sensitivo do “fin de siècle” admira, sobretudo, esta psicologia requintada, na qual acredita reconhecer a sua própria decadência; Dostoiévski será um assunto de predileção da psicanálise. Daí se origina a pretensão de reclamar Dostoiévski em favor das rebeliões mais subversivas do espírito anárquico do “après-guerre” (…).

(…) Nesse mundo, seja ele negro ou vermelho, não existe lugar para nós outros. Mas como aceitar um poeta cujo pensamento nos abala? Dostoiévski não faz “arte pela arte”; ele nos arrasta até às últimas consequências. Inúteis quaisquer concessões. Reconhecendo-se que certas acusações violentas à Europa são plenamente justificadas, é preciso admitir que daí para uma revolução total, mesmo espiritualista, vão poucos passos, dos quais somente o primeiro custa.

Inútil, igualmente, distinguir entre os frutos da inspiração poética, válidos também para nós, e as opiniões íntimas do autor, objeto somente da crítica psicológica e da história literária. Em virtude de tal distinção, a obra de arte se tornaria o fruto sublime dum solo impuro, produto exclusivo do subconsciente, resultado de uma partenogênese misteriosa; e nós não aceitaríamos esse artifício unicamente para isentar o autor, à nossa maneira, de responsabilidades, às quais ele não desejaria fugir.

Ao contrário, cumpre admitir que na obra de Dostoiévski a política ocupa um lugar maior do que a literatura, e que as suas convicções políticas nos surpreendem. É justamente isso. A literatura russa do século XIX é profundamente política. O país não tem imprensa nem tribuna, nem mesmo cátedras livres, e a literatura é a única voz do povo, em plena evolução política e social. Todas as coisas, a ciência, a própria teologia, estão impregnadas de política.

A literatura torna-se uma tribuna. Existem aí, como no parlamento inglês, dois partidos opostos. Um, o dos “Ocidentais”, que glorificam a Europa e desejam a europeização integral da Rússia; para isso é preciso primeiramente destruir as instituições estabelecidas, o que lhes vale a acusação de niilismo. Os outros, os “eslavófilos”, glorificam o passado nacional, mesmo o asiático; é necessário esmagar as influências estrangeiras, o que lhes vale a acusação de obscurantistas.

(…) Quando Dostoiévski escrevia um romance, via primeiramente os problemas e depois as personagens. O aspecto dos seus manuscritos, muitos dos quais foram editados em fac-símile, é muito curioso. No começo ele emenda mais do que escreve, e as margens são cheias de figuras, representando catedrais, demônios, anjos, que simbolizam os seus problemas. Depois, a personificação começa; o texto corre mais ligeiro, e os desenhos simbólicos se transformam em retratos imaginários; a comparação permite estabelecer as preferências do poeta, e essa comparação prova aquilo que a interpretação dos textos deixava prever: as preferências do poeta são para os seus inimigos ideológicos.

Dostoiévski é de uma perfeita imparcialidade artística. Ele sabe que o mundo não é governado pelos anjos, ou o é apenas pelo anjo vencido. Parece que ele forma os seus “anticristos” — um Raskolnikov, um Kirillov, um Ivan Karamazov — com grande simpatia, e que estes constituem, às vezes, os intérpretes do escritor. Isso explica o mal-entendido, muito tempo reinante, de que o próprio Dostoiévski era revolucionário e ateu.

(…) Dostoiévski é cristão. Nós também. Campo de encontro, enfim? Não, absolutamente. Pois Dostoiévski nos recusa o direito de nos chamarmos cristãos. Ao contrário. Ao lado do operário de Londres, do burguês de Paris e do professor de Heidelberg, ele coloca o padre romano. Vosso pretenso cristianismo — diz ele — é a religião do Anticristo. Eis aí o assunto de “O Grande Inquisidor”. (…) Cumpre recristianizar o mundo e a fé, por um esforço de síntese, por um “humanismo cristão”, que lance uma ponte sobre o abismo. Sempre é necessário saber aquilo que nos separa e aquilo que nos une. O que nos separa é muito e muito. Mas não sejamos intransigentes diante dessa face barbada, sulcada pelos sofrimentos. O que nos une é o Cristo; e “tout le reste est littérature” (…)”.


Trechos extraídos de Carpeaux, Otto Maria, Ensaios Reunidos, TopBooks Editora, São Paulo, 1999.

“É preciso falar cara a cara para poder ler a alma no rosto, para que o coração soe em palavras. Uma palavra dita com convicção, com plena sinceridade e sem medo, vale muito mais que dez folhas de papel cobertas de palavras”.

Dostoiévski
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